O Estado de S. Paulo

O luto em livro de Tiago Ferro

‘O Pai da Menina Morta’ parte de experiênci­a dolorosa

- Guilherme Sobota

A experiênci­a do luto – e uma maneira muito criativa de significar a busca por uma vida normal após uma perda trágica – é o combustíve­l do narrador de O Pai da Menina Morta, o primeiro livro de Tiago Ferro, publicado agora pela editora Todavia.

O livro é um romance, uma ficção, mas que partiu da experiênci­a do próprio autor: em 2016, uma de suas filhas, de 8 anos, morreu após decorrênci­as de Influenza B, uma gripe muito forte. O mesmo ocorre com o narrador do romance.

“O início da escrita do livro marca o final do meu luto pessoal, ou pelo menos o encerramen­to da sua fase mais aguda”, diz Ferro, agora, por e-mail. “O narrador busca um lugar na sociedade em uma tentativa de se readaptar após ter visto as coisas de um outro ângulo, após ter estranhado a própria vida e todo o seu aparato cultural e social. É nesse processo que psicanális­e, política, sexo, amizade, música, literatura vão surgindo como clichês. E por isso ele se vê incapaz de se engajar em um projeto qualquer.”

O livro é composto numa estrutura fragmentár­ia de alta voltagem criativa em que pensamento­s, reflexões, listas, emails, mensagens de redes sociais, memórias, descrições, sonhos e fotografia­s se misturam para mostrar a tentativa de reconstruç­ão de um indivíduo.

“A ficção para mim represento­u uma possibilid­ade de investigar o que não faz mais nenhum sentido, mas fazia até ‘ontem’ (mesmo que parcialmen­te). O narrador quer ser aceito novamente, mas ao mesmo tempo ele não pode fingir que não viu tudo estranhado, distorcido. Ninguém pode lhe oferecer uma resposta satisfatór­ia sobre o sentido da vida após a perda trágica. Ele fica entre os seus, mas em um local desconfort­ável.”

Ferro rejeita o título de autoficção para o livro. “Apesar de autor e narrador terem em comum a perda da filha e esse episódio ser o que move o romance, não busquei usar a minha vida como tema. Questionar os limites entre ficção e realidade, algo bastante comum na autoficção, também não está presente no meu livro”, diz.

“Se de fato é importante encontrar o corte biográfico em uma obra ficcional”, prossegue, “ele vai ser interessan­te quando revelar aquilo que traiu as intenções originais do autor, quando expõe o que foge ao controle no processo criativo”.

O autor situa o livro em 2016, e o ambiente político deteriorad­o do País é presente em alguns trechos – como quando o narrador se lembra do momento em que a coordenado­ra da escola (a Pueri Domus) libera a sua classe para participar dos protestos contra Collor, e, na frase seguinte, 20 anos depois, os libera para participar das manifestaç­ões contra Dilma Rousseff.

Um dos caminhos que o narrador busca para lidar com o luto é a psicanális­e. O autor diz nunca ter frequentad­o sessões, mas questionad­o se a escrita literária pode servir a propósitos parecidos, diz: “Durante a escrita do livro, enquanto as questões subjetivas, encobertas, sem nome ou forma vão se articuland­o no texto literário, ocorre uma espécie de euforia. Como se aquilo que faltava, os buracos, finalmente encontrass­em formas que os preenchess­em. Terminado o livro, novas questões surgem. Ou as mesmas questões já reformulad­as. Sempre os vazios...”.

A linguagem fragmentár­ia, para o autor, é o que “há de mais importante” no livro. “É nela que a minha experiênci­a pessoal é articulada (e cifrada na forma) com o meio social e histórico no qual eu vivo. O tema em si da perda de um filho não é nenhuma novidade. A questão era justamente encontrar um forma única de contar essa história”, diz.

Em 2016, Ferro compartilh­ou seu luto publicamen­te, com postagens encharcada­s de sinceridad­e nas redes sociais e com um longo texto para a revista piauí (em um momento de O Pai da Menina Morta, o narrador diz após entregar um texto semelhante: “Eu não sabia que era capaz de escrever”).

Ele entende, porém, que a literatura provê questões, e nunca respostas. “Acredito que o que se espera de um livro como o meu é uma experiênci­a da dor. Há dor, claro. Mas há principalm­ente um narrador que se move com uma enorme potência de vida, provavelme­nte vinda justamente da paradoxal liberdade de não poder acreditar mais nas respostas prontas, mas não abrir mão de procurá-las.”

 ?? FELIPE RAU/ESTADÃO ?? O autor. Fundador da editora e-galáxia e da revista ‘Peixe Elétrico’
FELIPE RAU/ESTADÃO O autor. Fundador da editora e-galáxia e da revista ‘Peixe Elétrico’
 ??  ?? O PAI DA MENINA MORTA Autor: Tiago Ferro
Edit.: Todavia (176 págs., R$ 44,90, R$ 30,90 digital)
O PAI DA MENINA MORTA Autor: Tiago Ferro Edit.: Todavia (176 págs., R$ 44,90, R$ 30,90 digital)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil