O Estado de S. Paulo

Verbetes do demo

- SÉRGIO AUGUSTO TWITTER: @SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Já nas livrarias este fim de semana a mais recente edição brasileira do Dicionário do Diabo, de Ambrose Bierce. Em janeiro do ano passado, essa mesma tradução, assinada por Rogério W. Galindo, saiu em formato luxuoso pela editora Carambaia e esgotou em quatro meses. Pelo único exemplar que há dias encontrei à venda, no site Estante Virtual, um sebo paulista pede R$ 900 (isto mesmo: novecentos reais). A reedição, agora com o selo Coleção Acervo, custa R$ 27,90.

Com 288 páginas, não é um cartapácio como soem ser os livros da espécie. Aliás, nem se intitulava Dicionário do Diabo nos seus primeiros cinco anos de circulação (19061911), mas Vocabulári­o do Cínico, título imposto a Bierce, que desde sempre preferiu o demo como seu “autor”; por uma razão muito simples: se o principal alvo dos verbetes é a soberba e ela é, conforme afiança a teologia, a mãe de todos os pecados, nada mais justo que a Lúcifer, a mais soberba das criaturas, fossem atribuídas as malignas definições acumuladas por Bierce ao longo de três décadas.

Também faria sentido atribuí-las a um cínico, a um Ersatz de Oscar Wilde, já que o cínico, pinço de um dos verbetes, é um sujeito “cuja visão defeituosa vê as coisas como elas são, não como devem ser”.

Jornalista furão e encrenquei­ro, Bierce notabilizo­u-se ainda como escritor. Seu mais celebrado conto, Um Incidente na Ponte do Riacho, chegou ao cinema num excelente curta de 28 minutos, dirigido pelo francês Robert Enrico em 1962 e premiado com o Oscar e a Palma de Ouro em Cannes. Esse e outros estão numa antologia, Visões da Noite, traduzida por Heloisa Seixas para a Record.

Nada, porém, lhe deu mais fama que seus aforismos, irreverent­es, desiludido­s, e afinados pelo diapasão do romano Juvenal, a quem devemos uma tradição perpetuada por Swift, Voltaire, Wilde, Mencken, Cioran, Millôr e tantos outros. Como a maioria dos citados, Bierce era um pessimista nato. A infância infeliz e as experiênci­as traumática­s da Guerra Civil americana (deu baixa com uma bala na cabeça) talvez expliquem o seu humor tão ácido e misantropo.

Não tinha em boa conta instituiçõ­es como casamento, família, religião, governo, políticos, justiça, jornalismo, filosofia, arte, e por aí vai – ou ia. Liquidou um livro enfadonho com sete palavras e uma preposição: “Suas capas ficam muito distantes uma da outra”. Foi, que eu saiba, o primeiro a notar que os americanos, ignorantes funcionais, só aprendem geografia fazendo guerra.

Nunca deu mole nos jornais para os quais trabalhou. Um deles pertencia a William Randolph Hearst, a quem desprezava solenement­e. O futuro Cidadão Kane ainda era seu patrão quando Bierce foi cobrir a Revolução Mexicana, e de repente sumiu. Para sempre. Na última semana de 1913. Aos 71 anos. Era ele o personagem de Gregory Peck em Gringo Velho.

E agora, alguns verbetes do capeta para animar o seu Sábado de Aleluia:

Acordeão – Instrument­o em harmonia com os sentimento­s de um assassino.

Advogado – Alguém perito em achar brechas na lei.

Almirante – Aquela parte do navio de guerra que fala enquanto a carranca pensa.

Amor – Insanidade temporária curada pelo casamento ou pela remoção do paciente das influência­s sob as quais ele contraiu a doença.

Aplauso – O eco de uma platitude. Ano – Período de 365 decepções. Armadura – O tipo de roupa usado por um homem cujo alfaiate é um ferreiro.

Bajulador – Útil funcionári­o, que não poucas vezes é encontrado editando um jornal.

Barulho – Fedor na orelha. Música não domesticad­a. O principal produto e signo autenticad­or da civilizaçã­o.

Canhão – Instrument­o utilizado na correção das fronteiras nacionais.

Cérebro – Aparato com o qual pensamos que pensamos.

Cemitério – Local isolado onde pessoas de luto comparam mentiras e cinzelador­es fazem aposta sobre a soletração.

Chato – Aquele que fala quando você quer que ele ouça.

Covarde – Aquele que em uma emergência pensa com as duas pernas.

Degradação – Uma das etapas do progresso moral e social que leva da vida privada à nomeação política.

Discussão – Método de tornar os outros mais convictos de seus erros.

Epitáfio – Inscrição em túmulo que mostra que virtudes conquistad­as na morte têm efeito retroativo.

Gota – O nome que o médico dá ao reumatismo de um paciente rico.

Homeopata – O humorista da medicina.

Idiota – Membro de uma grande e poderosa tribo cuja influência nos assuntos humanos sempre foi dominadora e controlado­ra.

Ladrão – Um sincero homem de negócios.

Noiva – Uma mulher com uma ótima perspectiv­a de felicidade em seu passado.

Paraíso – Lugar onde os maus deixam de incomodar com sua conversa sobre assuntos pessoais, e os bons ouvem com atenção enquanto você expõe os seus.

Patriotism­o – Discordand­o, respeitosa­mente, do dr. Johnson: não é o último refúgio dos canalhas, é o primeiro.

Pleonasmo – Exército de palavras escoltando um pensamento de baixa patente.

Preferênci­a – Um sentimento, ou estado mental, induzido pela crença errônea de que uma coisa é melhor do que outra.

Religião – Uma filha da Esperança com o Medo, explicando para a ignorância a natureza do incognoscí­vel.

R.I.P. – Abreviação desleixada de requiescat in pace, que atesta uma indolente boa vontade para com os mortos. As letras originalme­nte significav­am nada mais do que reductus in pulvis (ao pó retornarás).

Repolho – Conhecido vegetal que nasce em hortas, é usado na culinária e tem mais ou menos o mesmo tamanho e a sabedoria da cabeça humana.

Telefone – Uma invenção do Diabo que anula algumas das vantagens de manter a distância uma pessoa desagradáv­el.

Guarde este para amanhã:

1.º de abril – A tolice de março com outro mês acrescenta­do à sua insensatez.

Canhão – Instrument­o utilizado na correção das fronteiras nacionais

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