NO SUL DOS EUA, FERIDAS ABERTAS CUSTAM MAIS A FECHAR
Memoriais e museus travam uma batalha simbólica contra monumentos e estátuas de líderes confederados nas principais cidades do país
“Você não vai levantar, crioulo?”, grita a voz que sai do fone de ouvido, enquanto efeitos especiais dão a impressão de que o banco ocupado pelo visitante é chacoalhado e atingido por chutes. Outras vozes se somam, em um tumulto crescente, marcado por insultos, gritos e ruídos de pratos quebrados e talheres jogados no chão. A gravação reproduz a reação contra os negros que desafiaram a segregação racial nos EUA, em 1960, e se sentaram em balcões de restaurantes destinados aos brancos. Recriada no Centro de Direitos Civis e Humanos de Atlanta, na Geórgia, a experiência dura poucos minutos e coloca o visitante na mesma situação dos negros que seguiram a filosofia da não violência, de Martin Luther King Jr., e permaneciam em silêncio, sem nenhuma reação, enquanto eram intimidados.
A encenação não incluiu as agressões físicas que os ativistas sofriam. Muitos eram queimados com cigarros ou jogados no chão, onde recebiam socos e pontapés. Sobre outros, eram derramados copos de milk-shake ou refrigerante. Ainda assim, grande parte dos visitantes do museu se levanta dos bancos trêmulos e é confortada por uma funcionária, que espera com um abraço e um lenço de papel.
Outra sala apresenta exemplos das leis que institucionalizaram a segregação racial nos Estados do Sul, depois de sua derrota na Guerra Civil (18611865), na qual se opuseram ao fim da escravidão. “O casamento de uma pessoa branca com uma negra ou mulata ou uma pessoa que tenha um oitavo ou mais de sangue negro, é ilegal e nulo” diz o texto de uma das legislações. “Todos os que possuem licença para operar um restaurante devem servir exclusivamente pessoas brancas ou exclusivamente pessoas de cor e não devem vender às duas raças no mesmo salão ou servir as duas raças em qualquer lugar sob a mesma licença.”
Aberto em 2014, o centro é uma das instituições criadas em Estados do Sul nos últimos 26 anos para narrar a violência daquele período. Uma das primeiras surgiu em Birmingham, no Alabama, em 1992. A mais recente abriu as portas em dezembro, no Mississippi. Juntas, elas disputam espaço na narrativa histórica da região com os monumentos a líderes confederados que se rebelaram contra o presidente dos EUA, Abraham Lincoln, para resistir ao fim da escravidão.
“Jefferson Davis era um traidor, que se insurgiu contra os EUA. Ainda assim, sua estátua está em frente à Assembleia Legislativa do Alabama”, reclama Michelle Browder, de 46 anos, na capital do Estado, Montgomery. Davis foi o presidente dos Estados Confederados e sua imagem está diante do edifício que foi o ponto final da marcha liderada por King a partir de Selma.
A poucos metros, está a estátua de J. Marion Sims (1813-1883), considerado o pai da ginecologia moderna. “Ele usou escravas em seus experimentos e as operava sem anestesia ou qualquer substância para reduzir a dor”, afirma Michelle, ativista e criadora do “Mais que Tours”, que organiza visitas focadas em direitos civis e no impacto da escravidão e da segregação.
Michelle lidera uma campanha para que sejam erguidas no local estátuas das três escravas operadas com mais frequência por Sims: Anarcha, Betsey e Lucy. “Se eles o querem manter, devem também homenagear suas vítimas.”
O destino de mais de 700 monumentos que celebram líderes confederados esteve no centro das demonstrações de supremacistas brancos no ano passado. A maior delas ocorreu em Charlottesville, na Virgínia. Os protestos eram contra a remoção de estátuas de dois generais que lutaram contra o Norte. O evento foi marcado pela violência e a morte da ativista Heather Heyer, atropelada por um supremacista branco.
Para muitos negros, as estátuas confederadas são símbolos de opressão e deveriam ser eliminadas. Os brancos do Sul argumentam que elas são parte de sua herança cultural. “A maioria dos monumentos foi criada na era Jim Crow, em oposição à igualdade racial”, diz análise do Centro de História de Atlanta, usando o nome pelo qual as leis de segregação eram conhecidas – Jim Crow era um personagem de teatro negro, do século 19, interpretado por um ator que pintava o rosto e as mãos de preto. Aos 75 anos, o pai de Michelle, Curts Browder, passou a infância e a adolescência em Birmingham, sob as leis da separação racial. “Eu não sinto mais raiva, mas a segregação deixou um ferrão no meu peito.”
Além da separação entre negros e brancos em espaços públicos, o período foi marcado pelo terror da Ku Klux Klan. A cidade de Browder foi apelidada de Bombingham, em razão dos 50 ataques contra negros entre 1940 e meados dos anos 60. O de maior impacto ocorreu em 1963 e matou quatro meninas negras na Igreja Batista da Rua 16. A KKK está em decadência, mas muitos se lembram ainda dos desfiles do grupo em Montgomery, na década passada.