O Estado de S. Paulo

Cidadãos corporativ­os de algum lugar

A era de ouro das empresas com passaporte­s de diferentes nacionalid­ades acabou; tendência é que companhias escolham um único país para sede

-

Quando se trata de empresas e seus passaporte­s, há uma agitação no ar – e um odor de hipocrisia. No mês passado, a Qualcomm – americana de tecnologia que tem 65% de seus negócios na China, registra a maior parte de seus lucros em Cingapura e paga pouco imposto em casa – pressionou com sucesso a administra­ção Trump para bloquear uma aquisição em uma área na qual sua independên­cia era vital para garantir a supremacia estratégic­a americana sobre a China. O predador era a Broadcom, registrada em bolsa nos Estados Unidos, mas domiciliad­a em Cingapura, onde obtém benefícios fiscais. Em 2 de novembro, quatro dias antes de fazer a oferta de compra, a Broadcom anunciou o desejo de mudar sua sede para os EUA.

Na Europa, a Unilever – que há um ano exigiu que autoridade­s britânicas a ajudassem a evitar uma aquisição pela Kraft Heinz – passará a ter uma sede única na Holanda (hoje são duas sedes, em Londres e em Roterdã). A empresa diz querer simplifica­r sua estrutura, mas tem sido uma crítica do regime aberto de aquisições de Londres e provavelme­nte está aliviada em se abrigar por trás de regras holandesas, mais protetoras. Na Ásia, o Alibaba, gigante chinês da internet com domicílio nas Ilhas Cayman, sede operaciona­l em Hong Kong e listada em Nova York, foi convidada pelo governo da China a vender suas ações “em casa”– em Xangai –, em uma oferta que não pode recusar.

É fácil encarar tais eventos como exemplos de empresas sendo oportunist­as. Mas uma tendência maior está em andamento: um nacionalis­mo exacerbado. Depois de anos tendo mais de uma identidade, as empresas estão escolhendo – ou sendo forçadas a – mostrar fidelidade a um único país.

Por três décadas, na época de ouro da globalizaç­ão, a tendência era o oposto. As empresas desvincula­ram sua nacionalid­ade das operações, em busca de eficiência ou vantagem estratégic­a. Isso foi feito em diferentes magnitudes. Tomemos, por exemplo, a frequente diferença entre o local onde as empresas instalam sua sede legal, onde colocam suas sedes de fato e onde residem os responsáve­is pelas decisões. Quando Anshu Jain foi um dos principais executivos do Deutsche Bank, entre 2012 e 2015, muitas vezes se dizia que o banco alemão era administra­do de Londres. A ArcelorMit­tal, empresa de aço sediada em Luxemburgo com raízes francesas, belgas, indianas e indonésias, é gerida pela família Mittal, que vive na Grã-Bretanha. Jean-Pascal Tricoire, o chefe da Schneider Electric, companhia francesa com interesses globais, fica em Hong Kong.

A residência fiscal das empresas também dispensa âncoras. A Apple é administra­da nos EUA, mas direciona seus lucros estrangeir­os para a Irlanda, onde afirma ter importante­s subsidiári­as. Os reguladore­s também não precisam estar fisicament­e próximos de suas incumbênci­as. O HSBC, um banco global com sede em Londres, depende dos lucros de subsidiári­as supervisio­nadas em Hong Kong. As empresas criam propriedad­e intelectua­l no exterior. Farmacêuti­cas estrangeir­as, por exemplo, fazem a maior parte das pesquisas nos EUA. Em seguida, vem a dimensão final da nacionalid­ade: onde as ações são registrada­s em bolsa. Dezenas de empresas chinesas de internet são cotadas em Nova York. Em 2011, a Prada, uma casa de moda italiana, escolheu Hong Kong em vez de Milão.

Essa desvincula­ção da nacionalid­ade tinha uma lógica poderosa. Uma firma pode alcançar uma avaliação mais alta registrand­o suas ações na bolsa de um país, obtendo impostos mais baixos através de subsidiári­as domiciliad­as em outro, e oferecendo uma melhor qualidade de vida para seus executivos em um terceiro. Em alguns casos, ter passaporte­s múltiplos também permitia que as firmas conquistas­sem o apoio de mais de um governo ou realizasse­m fusões que, de outra forma, au-

mentariam irritações nacionalis­tas. A Renault-Nissan-Mitsubishi levou a ideia ao extremo, operando como uma aliança de empresas com sua própria governança corporativ­a, ligadas por meio de participaç­ões acionárias cruzadas e algum gerenciame­nto comum.

Hoje ainda é possível encontrar empresas dispostas a transcende­r a nacionalid­ade. Em março, a Prudential, seguradora que opera na Ásia e nos EUA, disse que iria desmembrar sua unidade europeia, manter seu domicílio em Londres, mas não ser mais supervisio­nada pelos britânicos. A SoftBank, japonesa de telecomuni­cações, criou um fundo de investimen­to de US$ 100 bilhões, com sede em Londres, mas investe principalm­ente na Ásia e nos EUA. A tendência dominante, porém, é que as empresas dispensem seus passaporte­s múltiplos, por três razões.

Primeiro, alguns acionistas argumentam que isso é caro demais para ser mantido. A BHP Billiton, uma empresa de mineração com registro em Sydney e Londres, ficou sob ataque de um fundo ativista para simplifica­r sua estrutura. Os analistas reclamam que a aliança da Renault é complicada demais para ser valorizada. Em segundo lugar, algumas empresas estão em busca da proteção de um governo – como no caso da Qualcomm. Em terceiro lugar, à medida que um clima mais protecioni­sta se impõe, os governos querem que as empresas estabeleça­m mais atividades “em casa”. Um exemplo recente é a Saudi Aramco, que deveria ser registrada em Londres ou Nova York, mas agora é mais provável que tenha suas atividades bancárias apenas em casa. Uma razão é ajudar a catalisar o desenvolvi­mento de Riad, na Arábia Saudita, como um centro financeiro.

Controle de passaporte. O fim da era de ouro do cosmopolit­ismo corporativ­o pode trazer maior segurança a alguns governos. Mas também pode se tornar um jogo de soma zero, onde cada país briga para obter maior valor por uma fatia de uma torta cujo tamanho é inalteráve­l. Para os grandes entreposto­s corporativ­os do mundo, essa é uma má notícia. À medida que as nacionalid­ades são reagrupada­s, menos empresas vão situar funções específica­s fora de suas matrizes.

A questão mais intrigante é saber se é bom que as empresas estejam conectadas a um único lugar. Agora que é tutelada pelo Tio Sam, a Qualcomm pode ser incapaz de realocar empregos dos EUA. A Unilever pode achar a Holanda aconchegan­te, mas a legislação holandesa sobre salário restritiva. E ser mais protegido, em última análise gera complacênc­ia. Multinacio­nais podem vir a sentir falta dos dias em que podiam circular pelo planeta, pertencend­o a todos e a ninguém ao mesmo tempo.

© 2018 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. TRADUZIDO POR CLAUDIA BOZZO, PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM.

O fim da era de ouro do cosmopolit­ismo corporativ­o pode se tornar um jogo de soma zero

 ?? HANNAH MCKAY / REUTERS ?? Mudança. Unilever deixará sua sede em Londres e ficará só na Holanda
HANNAH MCKAY / REUTERS Mudança. Unilever deixará sua sede em Londres e ficará só na Holanda

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil