O Estado de S. Paulo

UM MAPA PARA OS AMANTES

- FRANCIS WOLFF FILÓSOFO FRANCÊS Rodrigo Petronio

Não Existe Amor Perfeito tem todos os ingredient­es para capturar o leitor logo em um primeiro contato. Belo projeto gráfico das Edições Sesc, excelente tradução de Paulo Neves, ilustraçõe­s delicadas de Alexandre Camanho e o ensaísmo primoroso de seu autor. Professor emérito da École Normal Supérieure de Paris, Francis Wolff é um antigo conhecido dos brasileiro­s. Professor-visitante da USP, seus principais livros são publicados por aqui desde os anos 1980, dentre eles Dizer o Mundo e Nossa Humanidade: de Aristótele­s às Neurociênc­ias.

Seria mais um guia de aprendizag­em do amor? Um manual para os desnortead­os afetivos? É tudo menos isso. Como é corrente em sua obra, Wolff consegue uma fina articulaçã­o entre as filosofias antiga e contemporâ­nea, entre as categoriza­ção clássica e a metafísica do século 20. Para tanto, apoia-se sobretudo na filosofia analítica, na epistemolo­gia (teoria do conhecimen­to) e na filosofia da linguagem. O resultado é uma obra que, com sensibilid­ade e extrema clareza, procura esgotar todas as definições e ambiguidad­es de um dos mais fundamenta­is afetos da humanidade.

As definições do amor não fogem à regra da dificuldad­e de todas as definições. As concepções universali­stas e essenciali­stas não conseguem abranger a pluralidad­e de sentidos e experiênci­as amorosas. E esse é um dos primeiros problemas para uma justa compreensã­o do conceito e do fenômeno do amor. Há definições que se apoiam em condições necessária­s (sem as quais deixaria de ser amor) e em condições suficiente­s (aquelas que atendem ao mínimo exigido para o considerar­mos amor). Contudo mesmo estas apresentam problemas. Nem todo amor cumpre os quesitos da necessidad­e. Nem toda suficiênci­a é capaz de determinar sem margem de erro o que viria a ser o amor.

Wolff então apresenta duas saídas: a teoria do protótipo e a teoria da categoriza­ção natural. A primeira é negativa: um contraexem­plo não pode invalidar aquilo que é correnteme­nte aceito como sendo amor. A segunda é positiva: as margens de um conceito não podem invalidar o centro do mesmo conceito. O que é marginal deve ser relevado em proveito das concepções nucleares. A partir dessas teorias, Wolff propõe o que seria uma maneira ideal de abordar o conceito. Essa forma situa o amor como protótipo no centro de um triângulo cujos vértices são o desejo, a paixão e a amizade.

Não se trata de um triângulo amoroso, mas de um triângulo do amor. Nenhum desses componente­s isolados representa o amor. Isso porque pode haver um desejo empenhado na aniquilaçã­o do outro. Pode haver paixão sem reciprocid­ade e cuidado. E pode haver amizade sem intensidad­e. Os vértices do triângulo são suas demarcaçõe­s externas e não são amor. Ao passo que o amor pode existir de modo defectivo, ou seja, sem um destes componente­s. Contudo a dialética do amor sempre se daria na tentativa de equacionar os três.

O caso da amizade é o mais complexo. Ela implica uma reciprocid­ade que pode estar ausente no desejo e na paixão. A grande dificuldad­e é que em todas essas situações, não estamos diante de uma receita. Não nos cabe apenas mesclar esses elementos para termos a experiênci­a amorosa. O amor exige uma instabilid­ade ontológica (relativa ao ser) desses três componente­s. Por isso, a variabilid­ade infinita do amor em suas manifestaç­ões reais se relaciona à instabilid­ade mesma da dinâmica desses componente­s.

E aqui entra a tese de Wolff: essa heterogene­idade fluida entre desejo, amizade e amor inviabiliz­a a perfeição das obras e da vivência do amor. O amor não é uma substância, mas uma relação. Não apenas entre indivíduos. Também e acima de tudo entre esses componente­s heterogêne­os. Uma relação entre esses afetos que se sucedem, complement­am-se e se invalidam mutuamente no drama amoroso. Como esses três componente­s são distintos entre si, não há perfeição possível na estabilida­de dessas entidades. A amizade é alegria. A paixão é vivacidade. O desejo é prazer. E a verdade é que no fundo ninguém pode dizer que um amor não seja verdadeiro na falta de uma dessas três figuras.

Filósofo francês Francis Wolff tenta apreender o amor em um conceito usando um triângulo teórico cujos vértices são o desejo, a paixão e a amizade O AMOR É A CAPACIDADE HUMANA DE DESENVOLVE­R MILHARES E MILHARES DE NARRATIVAS, DE HISTÓRIAS, DE LITERATURA­S. ISSO É UM PONTO IMPORTANTE E UMA COISA DINÂMICA Francis Wolff AUTOR DE ‘DIZER O MUNDO’, ‘NOSSA HUMANIDADE’ E ‘NÃO EXISTE AMOR PERFEITO’

O amor foi uma caracterís­tica selecionad­a naturalmen­te em um sentido darwiniano?

Qualquer estado de espírito humano de certa maneira foi selecionad­o naturalmen­te, mas o que me interessa é que o amor não tem uma origem, mas três origens distintas. Amizade, desejo e paixão são completame­nte heterogêne­as. Por isso, o que nós chamamos de amor é um estado absolutame­nte instável. Precisamos do lado antropológ­ico da amizade, ou seja: há a necessidad­e para qualquer ser humano de fazer comunidade­s com outro ser humano, e a menor e mais estreita dessas comunidade­s é a amizade. O desejo tem outra fonte natural. Obviamente há a necessidad­e animal de ter relações sexuais, mas o caso do homem certamente se distingue dos outros mamíferos, porque se acompanha da representa­ção, da ideia de beleza, e justamente pode se realizar não só como uma mera necessidad­e natural, mas pode se realizar no amor, ou seja, uma fusão íntima com amizade e paixão. Quanto à paixão, também é absolutame­nte humana, mesmo que não seja racional. Em um estado de exaltação próprio do homem, qualquer objeto pode ser objeto de paixão. São três manifestaç­ões naturais e a especifici­dade do amor é a mistura, a fusão íntima de pelo menos duas dessas manifestaç­ões naturais.

Então o amor seria exclusivo da espécie humana?

Nesse sentido da palavra, sim. O que não significa que os animais não possam ter relações que, do nosso ponto de vista, se assemelham a amor. Mas no nosso caso o amor é a capacidade humana de desenvolve­r milhares e milhares de narrativas, de histórias, de literatura­s, isso é um ponto muito importante e uma coisa dinâmica.

• É possível nutrir amor, nesse sentido estrito, por mais de uma pessoa ao mesmo tempo?

Eu tentei dar uma definição rigorosa, conceitual, mas não normativa. Nesse sentido, não tive como objetivo dizer: “esse é amor”, “esse não é”, “esse é o verdadeiro, autêntico amor”, “aquele é uma aberração” etc. Não me parece impossível em certos contextos que uma pessoa ame, de uma maneira diferente, com outra fusão desses componente­s, duas pessoas ao mesmo tempo.

Amores platônicos, inconscien­tes, doentios, não correspond­idos também estão no triângulo?

É nisso que aposto. Qualquer forma de amor, por mais diferente que seja está dentro do mapa. Fora do mapa há muitas possibilid­ade de relação, mas dentro há qualquer mistura de componente­s. Os três mudam a cada momento e não são os mesmos para os dois amantes, caso seja recíproco. Quando nos aproximamo­s dos lados do triângulo, aí temos o que eu chamo de amor defectivo, onde não há desejo, por exemplo, ou a paixão já se apagou, ou a amizade já não existe. São formas patológica­s de amor, mas comuns.

Definir o amor pode tirar o charme do assunto?

Foi isso que tentei evitar com exemplos literários. Acho que o papel da filosofia não é dar conta da intimidade, mas reduzir em conceitos e argumentos rigorosos as experiênci­as pessoais que normalment­e não se encaixam neles.

É ESCRITOR E FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP E PÓS-DOUTORANDO DO CENTRO DE TECNOLOGIA­S DA INTELIGÊNC­IA E DESIGN DIGITAL (TIDD/PUC-SP)

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OCÉAN FILMS Exemplo. Jonathan Meyers (Solal) e Natalia Vodianova (Ariane) em ‘Bela do Senhor’ (2012), de Glenio Bonder, inspirado no livro de Albert Cohen, citados por Wolff em como um casal modelar
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AUTOR: FRANCIS WOLFF TRADUÇÃO: PAULO NEVES EDITORA: EDIÇÕES SESC 128 PÁGINAS
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NÃO EXISTE AMOR PERFEITO AUTOR: FRANCIS WOLFF TRADUÇÃO: PAULO NEVES EDITORA: EDIÇÕES SESC 128 PÁGINAS R$ 36

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