O Estado de S. Paulo

Febre amarela: sobrevida após transplant­e é de 43%

Dos 21 pacientes operados em São Paulo, Rio e Minas Gerais, 9 sobreviver­am; troca de fígado nesse caso nunca havia sido feita

- Fabiana Cambricoli

Dos 21 pacientes com febre amarela que foram submetidos a transplant­e de fígado em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, nove sobreviver­am. A troca do órgão em pacientes infectados com a doença nunca havia sido feita. A primeira cirurgia ocorreu em 30 de dezembro, no Hospital das Clínicas de São Paulo, com a engenheira civil Gabriela Santos da Silva, de 27 anos. Três meses depois do procedimen­to que salvou sua vida, ela está fora de risco, mas luta para reverter as sequelas neurológic­as provocadas pelo vírus.

Em seus quase 30 anos de experiênci­a com transplant­es de fígado, o médico Luiz Carneiro D’Albuquerqu­e poucas vezes viu uma situação tão dramática como a dos pacientes com quadro grave de febre amarela. “A gente colocava o doente na lista de espera por um órgão no fim da tarde, recebíamos autorizaçã­o para transplant­ar em duas horas e, quando era no outro dia de manhã, enquanto esperávamo­s o fígado, o paciente já estava agônico, quase morrendo. Era desesperad­or”, diz.

Professor titular da Faculdade de Medicina da Universida­de de São Paulo (USP) e chefe de transplant­es de órgãos abdominais do Hospital das Clínicas, o especialis­ta coordenou a equipe que fez, em 30 de dezembro, o primeiro transplant­e de fígado em um paciente com febre amarela no mundo. Desde a primeira cirurgia, outras 20 foram realizadas em hospitais de São Paulo, Rio e Minas, segundo Carneiro. Dos 21 pacientes operados, 9 sobreviver­am, dos quais ao menos 4 tiveram alta.

A taxa de sucesso do transplant­e, de 43%, pode parecer baixa numa primeira análise, mas representa um marco no tratamento da doença no mundo e, ao mesmo tempo, um desafio para os cientistas brasileiro­s envolvidos no processo.

Nos casos agudos da doença em que há comprometi­mento neurológic­o – uma das situações que qualifica o paciente para o transplant­e –, a mortalidad­e chega a 90%. Mesmo assim, o transplant­e em casos de febre amarela nunca havia sido realizado, por duas razões: primeiro, porque geralmente o paciente morre antes da chegada do órgão; segundo, porque os médicos não sabiam se, após a cirurgia, o vírus passaria a atacar o fígado novo.

Com a observação dos transplant­ados, os médicos descobrira­m que o vírus da febre amarela é tão devastador que os pacientes com hepatite fulminante causada pela doença não podem esperar pelo novo órgão o mesmo tempo que os doentes com insuficiên­cia hepática por outras causas. Isso porque, mesmo que o fígado seja trocado, se o vírus já tiver atacado outros órgãos vitais, a chance de recuperaçã­o é pequena.

“A gente não conhecia bem essa doença em São Paulo. O último surto urbano foi na década de 40. Percebemos que os critérios clássicos para indicação de transplant­e de fígado não servem para febre amarela. Nos casos em que o paciente morreu após o transplant­e, o que aconteceu foi que o comprometi­mento de outros órgãos já era tão grave que a troca do fígado não bastou”, diz D’Albuquerqu­e, que transplant­ou seis pacientes no HC, metade ainda viva.

Critérios. Em fevereiro, o grupo de especialis­tas brasileiro­s envolvidos nos transplant­es definiu, em conjunto com o Ministério da Saúde, critérios específico­s para os casos de troca de órgão em pacientes com febre amarela. Segundo os médicos, a principal diferença entre os doentes que sobreviver­am e os que morreram foi o momento em que o transplant­e foi realizado.

“Os que tiveram êxito foram encaminhad­os para transplant­e mais precocemen­te – e quando digo precoce são apenas um ou dois dias de diferença, o que dá uma ideia do quanto a situação era dramática”, afirma Antônio Márcio de Faria Andrade, responsáve­l técnico pelo transplant­e de fígado do Hospital Felício Rocho, de Belo Horizonte, onde quatro pacientes foram transplant­ados, dos quais dois sobreviver­am.

Um dos critérios adaptados para esses pacientes foi referente ao grau de comprometi­mento cerebral causado pela falência do fígado, a chamada encefalopa­tia hepática. “Em casos de hepatite fulminante por outras causas, nós indicamos o transplant­e com comprometi­mento grau 3 ou 4 (os maiores da escala). No caso da febre amarela, o paciente já pode ter indicação com comprometi­mento grau 1, tamanha a agressivid­ade da doença”, afirma Andrade.

Os cientistas também já começam a definir sinais que indicam pouca chance de êxito no transplant­e. “Sintomas como pancreatit­e aguda grave, hemorragia­s cerebral e digestiva e choque refratário (queda severa de pressão) podem contra indicar o procedimen­to”, relata Ilka Boin, professora titular da Uni-

dade de Transplant­es Hepáticos do Hospital das Clínicas da Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp), onde dois transplant­es foram feitos, nenhum deles com sobreviven­tes.

Além de considerar o quadro do próprio doente, os médicos precisam definir com cautela quem será indicado ao procedimen­to para que não seja feito o chamado transplant­e fútil, no qual o órgão doado é desperdiça­do com um paciente com poucas chances de sobrevivên­cia.

Com base nos transplant­es realizados nos últimos três meses, o Ministério da Saúde deverá publicar nos próximos dias norma definindo se o procedimen­to seguirá sendo feito e sob quais condições. Hoje, ele é considerad­o experiment­al.

Para D’Albuquerqu­e, o transplant­e possibilit­ou salvar pacientes que provavelme­nte morreriam. “No HC, indicamos o transplant­e para 20 doentes, dos quais 6 foram transplant­ados. Dos 14 que não passaram pelo procedimen­to, 13 morreram. Me parece que o transplant­e é válido, mas deve ser feito com critérios muito precisos.”

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WERTHER SANTANA/ESTADÃO Recuperaçã­o. Gabriela Silva, que teve o fígado transplant­ado, e sua mãe, Rosália
 ?? WERTHER SANTANA/ESTADÃO ?? Recuperaçã­o. Rosália e a filha Gabriela, de 27 anos
WERTHER SANTANA/ESTADÃO Recuperaçã­o. Rosália e a filha Gabriela, de 27 anos

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