O Estado de S. Paulo

Fareed Zakaria

- FAREED ZAKARIA / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Para Trump, as palavras não têm peso. A retórica frouxa e as ameaças vãs, muitas vezes, saíram pela culatra.

Como forma de explicar alguns dos bizarros movimentos da política externa do presidente Donald Trump, muitas vezes nos dizem que ele “não é convencion­al” – e isso poderia ser um trunfo. É verdade que ele não segue o procedimen­to operaciona­l padrão em quase nada, desde receber briefings diários de inteligênc­ia a preencher cargos no Departamen­to de Estado. No entanto, sua distância mais marcante em relação a presidente­s anteriores é na retórica. Os presidente­s americanos tendem a pesar cuidadosam­ente suas palavras, acreditand­o que devem preservar a credibilid­ade da principal liderança mundial.

E então há Donald Trump, para quem as palavras não têm peso. Durante a campanha, ele criticou a Arábia Saudita como um país que “quer mulheres como escravas e matar gays”, apenas para fazer sua primeira viagem presidenci­al ao exterior justamente ao reino e abraçar calorosame­nte seus governante­s. Ele disse que a Otan estava obsoleta e depois simplesmen­te afirmou o contrário. A China era um manipulado­r de moeda que estava “estuprando” a América, até deixar de ser.

A retórica frouxa e as ameaças vãs, muitas vezes, saíram pela culatra. Depois que Trump foi eleito, ele decidiu ameaçar a China, refletindo sobre reconhecer Taiwan como país. O governo chinês exigiu que ele comprovass­e isso e congelou as relações com Washington. Trump teve de ligar para o presidente Xi Jinping e engolir suas palavras.

Mas há situações em que essa “flexibilid­ade” pode funcionar. Na Coreia do Norte, Trump ameaçou fazer chover “fogo e fúria” no país, apenas para agora saudar uma reunião com seu líder. Os defensores de Trump dizem que esse tipo de manobra pode resultar em um acordo que escape de abordagens mais convencion­ais do problema.

Todos nós devemos esperar que isso aconteça. Mas, até agora, vale a pena notar que a atmosfera circense da alternânci­a entre ameaças e abraços de Trump obscureceu um ponto-chave: foi Trump quem fez a concessão, não Kim Jong-un. Há muito tempo, a posição americana é a de que só haveria negociaçõe­s depois que a Coreia do Norte desse alguns passos concretos em direção à desnuclear­ização. Até recentemen­te, o próprio governo Trump insistiu que não recompensa­ria o fortalecim­ento nuclear com as negociaçõe­s.

Agora, há um bom argumento para ser flexível nessa questão processual. Devemos estar cientes, porém, de que, até o momento, Kim parece estar executando de forma brilhante uma estratégia inteligent­e. Ele embarcou em um fortalecim­ento acelerado, acumulando um arsenal nuclear genuíno, com mísseis que podem levar ogivas ao redor do mundo, criando tensões e até mesmo ameaçando suas relações com a China. Com o arsenal construído, ele agora está reparando as relações com Pequim, estendendo a mão à Coreia do Sul e se oferecendo para negociar com Washington.

A capacitaçã­o de Trump aqui pode muito bem ser a sua disposição de abandonar totalmente uma posição passada e endossar uma nova. Os EUA terão de aceitar menos que sua meta há muito declarada – a desnuclear­ização completa – e talvez Trump seja capaz de encontrar uma maneira de vender isso.

Concessões. Há, no entanto, um tipo diferente de conversa difícil que é mais preocupant­e. O governo pressiona com força em uma questão – o comércio com a Coreia do Sul, por exemplo – e depois anuncia um acordo, alegando ter conquistad­o significat­ivas concessões. Na verdade, na maioria das vezes, essas foram concessões simbólicas feitas pelos aliados para permitir que o governo mantivesse as aparências.

A Coreia do Sul, por exemplo, concordou em aumentar o número de carros que cada fabricante de automóveis americano pode vender no país de 25 mil para 50 mil. É uma concessão fácil de fazer. Nenhuma empresa americana vendeu nem sequer 11 mil carros lá no ano passado.

Os EUA continuam sendo uma superpotên­cia. Seus aliados buscam maneiras de acomodar o país. O governo Trump pode continuar fazendo exigências extravagan­tes e obterá algumas concessões, porque ninguém quer uma ruptura aberta com os EUA. Se Trump disser que os europeus precisam fazer algumas mudanças no acordo com o Irã, eles tentarão encontrar uma maneira de fazê-lo, pois não querem que o acordo fracasse e o Ocidente caia em desordem.

Este não é um sinal de poder, mas sim o abuso dele. Quando o governo de George W. Bush forçou uma série de países a apoiar a guerra no Iraque, isso não sinalizou a força americana – na verdade, enfraquece­u essa força. Este é um estilo que vai além da presidênci­a. Nos últimos anos, os EUA se acostumara­m a todo tipo de tratamento especial.

Por exemplo, o Estado de Nova York usou o poder do dólar como moeda de reserva do mundo para forçar os bancos estrangeir­os a pagar multas e fechar acordos. Funciona, mas cria um enorme ressentime­nto e leva países como a China a procurar maneiras de trabalhar fora do sistema, pois acreditam que o existente concede muita liberdade aos EUA.

O país constituiu sua credibilid­ade e capital político no último século. O governo Trump está atacando esse fundo fiduciário para obter vantagens políticas de curto prazo, de uma forma que o exaurirá permanente­mente.

A retórica frouxa e as ameaças vãs do presidente americano, muitas vezes, saíram pela culatra

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