EI tinha estrutura eficiente no Iraque
Burocracia. Grupo islâmico fundou Estado que arrecadava impostos, emitia certidões e limpava ruas de maneira mais eficiente que governo iraquiano; EUA mantiveram ataques aéreos a instalações petrolíferas, mas era a agricultura que movia a economia local
Estado Islâmico montou em territórios ocupados no Iraque estrutura administrativamente eficiente, com arrecadação de impostos e serviços melhores do que os do governo.
Os combatentes islâmicos fundaram no deserto um Estado que não era reconhecido por ninguém, exceto por eles próprios. Durante três anos, o Estado Islâmico controlou um território do tamanho da Grã-Bretanha, com uma população de 12 milhões de pessoas. Como eles conseguiram? Parte da resposta está nas 15 mil páginas de documentos obtidas pelo New York Times no Iraque.
Quando o EI ocupou Mossul, Mohamed Nasser Hamoud temeu o pior. Ele era funcionário do Conselho Diretivo de Agricultura Iraquiano e ouviu nos alto-falantes das mesquitas a ordem para que os servidores públicos voltassem ao trabalho. Aterrorizado, ele voltou ao prédio de seis andares onde trabalhava. Ao chegar, viu as cadeiras enfileiradas e o comandante sentado com uma pistola.
Mas seus temores eram infundados. Apesar do tom ameaçador, nada havia mudado. Os servidores municipais retornaram ao trabalho, tapando buracos nas ruas, pintando faixas de pedestres, consertando linhas elétricas e supervisionando folhas de pagamento. “O serviço executado era o mesmo de antes. Só que agora servíamos um grupo terrorista”, disse Hamoud.
O EI ficou conhecido por sua brutalidade, mas muito pouco sabemos sobre sua burocracia. Em pouco tempo, o grupo montou um Estado administrativamente eficiente, com arrecadação de impostos e coleta de lixo. Possuía um cartório de casamentos que monitorava exames médicos para se certificar de que os casais podiam ter filhos. Emitia certidões de nascimento em papel timbrado e administrava seu próprio departamento de veículos.
Os documentos mostram que o EI chegou a prestar serviços melhores do que o governo do Iraque. Uma das chaves do sucesso foi a receita diversificada extraída de muitos setores que os ataques aéreos não paralisavam. Livros contábeis, recibos e orçamentos descrevem como eles monetizaram cada centímetro do território, tributando trigo, leite de cabra e frutas vendidas nos mercados. Somente da agricultura arrecadavam centenas de milhões de dólares. Contrariamente à percepção popular, o grupo conseguia se financiar sem depender de doadores estrangeiros.
O mais surpreendente é que os documentos fornecem mais evidências de que as receitas fiscais do EI eram muito maiores do que as obtidas com a venda de petróleo. Era o comércio e a agricultura – e não o petróleo – que impulsionavam a economia do califado.
A coalizão liderada pelos EUA, tentando expulsar o EI da região, tentou em vão asfixiar o grupo bombardeando suas instalações petrolíferas. “Nós subestimamos o EI. Esses militantes perceberam a necessidade de manter as instituições”, disse Fawaz Gerges, autor de um livro sobre a história do grupo.
Limpeza. Hamoud e seus colegas ajudaram a manter o aparelho de governo em movimento e o EI começou a mudar todos os aspectos da vida na cidade. No seu trajeto de ida e volta do trabalho para casa, ele passou a caminhar pelas ruas laterais para não assistir às execuções em praças públicas. Foi então que ele reparou algo que o deixou envergonhado. As ruas estavam mais limpas do que na época do governo iraquiano.
Omar Bilal Younes, motorista de caminhão de 42 anos, cuja ocupação lhe permitiu cruzar de ponta a ponta o califado, observou a mesma coisa. “A coleta de lixo era ótima”, disse. Não foram os lixeiros que mudaram, mas a disciplina que os militantes impuseram a eles, segundo vários empregados que trabalharam no governo do EI.
“A única coisa que conseguia fazer na época do governo iraquiano era suspender o empregado por um dia sem direito a salário”, disse Salim Ali Sultan, que chefiou os serviços de limpeza na cidade de Tel Kaif, tanto para autoridades iraquianas quando para os jihadistas. “No governo do EI, eles poderiam ser presos.”
Os moradores também disseram que faltava menos água e os buracos nas ruas eram tapados rapidamente na época do EI, mesmo com ataques aéreos quase diários. Mas o novo governo não se preocupava apenas com assuntos administrativos. Havia uma burocracia para tudo, incluindo a moralidade.
Os cidadãos podiam ser parados na rua pela polícia da moralidade, a “hisba”, e eram obrigados a entregar seu documento de identidade em troca de um “recibo de confisco”. Eles tinham de se apresentar no gabinete do EI e enfrentavam um processo. Especialistas religiosos avaliavam o crime e preenchiam um formulário. Depois, o infrator assinava outro formulário: “Eu, abaixo assinado, prometo não cortar ou aparar minha barba”, diz um deles. “Se o fizer, estarei sujeito as punições que a hisba estabelecer.”
O fervor com que o EI policiava a população está refletido em 87 registros de prisão abandonados em uma delegacia de polícia. Os cidadãos eram condenados por crimes obscuros, como depilar sobrancelhas, jogar dominó, cortar o cabelo, tocar música ou fumar narguilé.
Em 2016, a filha de Hamoud, Sara, saiu para um passeio rápido sem cobrir os olhos. Ela foi vista por um policial e, antes de poder explicar, tomou um soco no olho. Desde então, seu pai a proibiu de sair de casa.
Com as mudanças, os moradores se defrontavam com escolhas difíceis: ficar ou partir? Hamoud fugiu. Ele e seu filho mais velho, Omar, haviam guardado US$ 30 mil para comprar uma casa. Na manhã da fuga, Omar retirou US$ 1.000 de sua conta bancária. Duas horas depois, uma unidade de combatentes bateu à sua porta. Um deles tinha o recibo do banco que Omar havia assinado. “Se tentar isto de novo, vamos matar todos vocês”, disseram.
Dinheiro. Na margem ocidental do Rio Tigre, havia uma maleta com documentos: formulários contábeis, projeções de orçamentos e recibos, CDs contendo planilhas que revelavam o escopo da máquina administrativa do EI. Os relatórios registravam mais de US$ 19 milhões em transações no setor agrícola e descreviam como o grupo ganhava dinheiro em todas as etapas da cadeia de fornecimento.
Antes de uma semente ser plantada, o EI já arrecadava com o aluguel da terra. Depois, cobrava um imposto sobre a colheita. Os caminhões que transportavam os grãos pagavam taxas. Os silos eram controlados pelos militantes, que ganhavam com a venda para os moinhos e com a produção e distribuição de farinha, que era vendida em supermercados e lojas, que também eram taxados.