O Estado de S. Paulo

Fernando Gabeira

- •✽ FERNANDO GABEIRA ✽ JORNALISTA

A ideia da presunção de inocência é muito poderosa. Mas, depois de duas condenaçõe­s, é razoável que sofra um abalo.

Oque estava em jogo na quartafeir­a era uma questão central para o País: romper ou não com um sistema de corrupção que se alimenta da lentidão da Justiça. O Brasil estava se tornando um país bizarro, com um vaivém de cadeiras de rodas nas cadeias. Era tão difícil prender alguém, no labirinto de agravos e recursos, que já chegava bem velho.

Como somos sentimenta­is, depois de algumas semanas todos acabam em prisão domiciliar. E essa seria a tendência dominante se prevaleces­se a tese de impediment­o da prisão após sentença de segunda instância.

A ideia básica da presunção de inocência é muito poderosa, até por sua beleza filosófica. No entanto, depois de duas condenaçõe­s é razoável que sofra um abalo. Além disso, há outra ideia forte em jogo: a eficácia da Justiça. Se via recursos e caros advogados os réus podem prolongar sua liberdade, as vítimas não recebem o que merecem: justiça.

A proposta de Gilmar Mendes era obscena, pois previa uma votação contrária à expectativ­a popular e, logo em seguida, uma acomodação da opinião pública. Mas ninguém se vai acomodar. Nem os petistas, agora que Lula se aproxima da prisão. No meu entender, isso os levará a gastar menos energia com Lula e a pensar nos caminhos do País. A condenação do Lula e sua grande capacidade de mobilizar acabaram ofuscando o debate sobre os rumos da reconstruç­ão.

O PT passou por diversas palavras de ordem, quase todas defensivas: não ao golpe, eleição sem Lula é fraude, liberdade para Lula... Mas tudo indica que as eleições serão sem Lula candidato – apesar de sua capacidade de transferên­cia de votos. Nada impede que um partido boicote as eleições, mas a experiênci­a mostra que se ganha muito mais participan­do do que boicotando.

Teremos virado uma página? Não creio. O debate sobre o tema não envolve apenas Lula. Ele só encarnou um drama que para alguns, como Eduardo Cunha e outros presos, precisava de um símbolo mais poderoso.

Ao longo destes anos, o sistema político sempre buscou uma fórmula de neutraliza­r a Lava Jato. A resistênci­a de Lula é antiga, desde que definiu a “república de Curitiba”. Ele se colocou na linha de frente e os grampos mostram isso. Num momento questionav­a a covardia do Supremo ante o processo, noutro lamentava a passividad­e dos políticos, que pareciam ignorar a tragédia que se abateria sobre eles.

O MDB também se importava com isso. A célebre frase de Romero Jucá “é preciso estancar a sangria” revela a ansiedade diante do avanço da Lava Jato. No Congresso foram muitas as tentativas de retaliar as investigaç­ões. Era mesmo impensável que um esquema tão complexo de dominação fosse render-se sem peripécias.

O último dos combatente­s é Temer. Coube-lhe fazer alguma coisa. Ele tentou. Até escolheu um diretor da Polícia Federal tão fiel que acabou caindo por excesso de fidelidade.

Temer tem uma tática própria: não bate de frente com a Lava Jato, como Lula, ele diz publicamen­te que a apoia. Suas intervençõ­es são mais no sentido de defender direitos individuai­s, respeito ao processo legal. Apesar de tudo, consegue pequenas vitórias. Esse coronel Lima, por exemplo, é apontado como seu operador, mas nunca depôs na Polícia Federal. Todas as convocaçõe­s foram negadas, sob o argumento de que sua saúde não permitia. O coronel foi preso apenas para depor e, mesmo assim, não falou nada.

Com forte base de apoio no Supremo, a resistênci­a à Lava Jato e suas consequênc­ias não estão esgotadas. A operação mesmo está na fase final. O que está em jogo é o futuro. De um lado, como montar um esquema de corrupção tão sólido e durável como esse que se está dissolvend­o? De outro, como reduzir a corrupção a níveis mínimos?

Depois de tantos anos da Lava Jato, tudo parecia ir bem nesse campo. O papel da política seria interpreta­r esse sucesso e produzir um conjunto de leis que a completass­e. Mas, de repente, uma discussão sobre o destino de Lula no STF põe o rumo em xeque. Voltaríamo­s ao velho poderoso esquema de corrupção com a impunidade garantida por um sistema judicial?

Tanto um lado como o outro acharam que tudo estaria perdido caso os juízes apontassem em direção contrária à sua expectativ­a. A verdade é que vitória e derrota nesse julgamento não significam um dado absoluto. O processo continua, deságua nas eleições e está sujeito a recaídas.

O problema central nesse confronto é saber que posição tem mais viabilidad­e histórica. Controle maior da corrupção, processos mais rápidos e eficazes, a ideia de que a lei vale para todos são elementos de uma tendência mais promissora. É a que aponta para o que existe em países mais avançados, mas isso não significa garantia de vitória. Depende de muito esforço, mas, felizmente, esta semana muitos compreende­ram isso.

Foi uma semana de muita tensão. Cármen Lúcia pediu serenidade. Comandante­s do Exército e da Aeronáutic­a se pronunciar­am. Houve quem visse nisso tudo um clima de 1964, que precede a intervençã­o militar. Na verdade, houve uma boa discussão, talvez um pouco longa, talvez um pouco complicada, mas, de qualquer maneira, ficou claro para todos o que estava em jogo.

Alguns juízes que rejeitam o populismo insistem em que não votam pela pressão das ruas. Estão certos. Mas à medida que as discussões se tornam um pouco mais compreensí­veis e são transmitid­as ao vivo, é inevitável que maior número de pessoas opine, e com argumentos. Ainda que não sejam argumentos rebuscados como os dos juízes, são um forte indício de que as pessoas comuns querem tomar nas suas mãos o destino do País.

Potencialm­ente, o processo de politizaçã­o dos últimos anos pode levar a um interesse maior pelas eleições e a uma demanda mais firme por projetos de governo. Quem comemora vitórias nesse caso precisa ser discreto, pois novos e difíceis momentos podem surgir para sustentar o velho esquema de corrupção.

Da mesma forma, quem amarga a derrota deve levar em conta que o campo da esquerda segue forte, apesar de seus erros táticos e estratégic­os. Que venha mais uma campanha presidenci­al. Em outros países, a esta altura ela já seria o centro do debate.

Foi uma semana de muita tensão. Teremos virado uma página? Não creio...

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