O Estado de S. Paulo

Seguidores em dissonânci­a cognitiva

- •✽ FABIO DE BIAZZI

Os fatos que vêm sendo trazidos à tona nestes anos da Lava Jato – e seus desdobrame­ntos em delações, condenaçõe­s e prisões – têm exposto de maneira crua e vívida os desmandos de personagen­s que estiveram envolvidos nesse amálgama bárbaro de corrupção, ideologia e incompetên­cia. Sinalizaçõ­es bastante claras do que estava sendo gestado datam certamente de mais de 12 anos atrás. Desde aquele momento, crescente número de apoiadores do malfadado regime optou por se afastar de seus principais atores, não mais dando seu suporte por meio de atos, argumentos ou votos. Como esperado, a avalanche de evidências e provas de malfeitos dos últimos três anos só fez esse número aumentar mais e mais.

Entretanto, surpreende­ntemente há ainda um contingent­e não desprezíve­l de cidadãos, em diferentes nichos da sociedade que continuam a seguir e defender – direta ou veladament­e

– essas deplorávei­s lideranças, mesmo após haverem sido expostas por uma montanha de fatos, evidências, provas e condenaçõe­s. As linhas que seguem tentam trazer alguma luz a esta questão, que nos deixa perplexos: por que alguns indivíduos optam por defender alguém em quem depositara­m seus anseios e expectativ­as, mas por quem foram lógica e objetivame­nte traídos por ações e decisões não condizente­s com os valores e comportame­ntos desses mesmos indivíduos?

Antes de mergulharm­os na questão propriamen­te dita, é necessário separar da análise aqueles que não estão sendo ou não foram de modo algum traídos, mas mantêm seu apoio por opção pragmática, motivados por recompensa ou coerção. Assim, há os que participam das benesses – salários, verbas, favores, posições de poder, indicações ou sobras dos esquemas de corrupção – e há ainda aqueles que foram beneficiad­os e seguem com seu apoio na expectativ­a de continuare­m a ser favorecido­s por ações ou políticas específica­s, como nos exemplos do

Bolsa Família e dos financiame­ntos de carros e bens de consumo duráveis em 60 ou 72 meses. Em ambos os casos, esses apoiadores ou compartilh­am os valores e a moral exposta pelos fatos, ou simplesmen­te não consideram a questão relevante: são apenas imorais ou amorais. A coerção, felizmente, em nosso contexto não faz parte da equação, pois não nos assemelham­os a uma Venezuela, Cuba ou Coreia do Norte, países onde qualquer hesitação pública no apoio aos “grandes líderes” pode levar à prisão ou à morte. Isto posto, voltamos nossa atenção para os indivíduos que apoiam líderes que têm atitudes e valores incongruen­tes com seus próprios. As mulheres e os homens que apoiaram os últimos governos, em sua imensa maioria, certamente o fizeram acreditand­o que eles seriam capazes de levar a um maior desenvolvi­mento social e econômico, à diminuição das desigualda­des e a melhores níveis de educação, saúde e segurança. Os fatos e a realidade vistos, todavia, constituír­am um desastre político e econômico sem precedente­s e o maior caso de corrupção sistêmica da História. Por que, então, cidadãos – e, de maneira recorrente, figuras que expõem em público suas opiniões, como acadêmicos, jornalista­s e artistas – que buscam respeitar as leis, não mentem compulsiva­mente e não são autoritári­os em suas atitudes cotidianas conseguem conviver com a contradiçã­o de apoiar líderes que fazem desses comportame­ntos desviantes a essência de seu modo de ser?

Leon Festinger – 1919-1989, psicólogo americano e pesquisado­r do MIT e de Stanford – desenvolve­u o conceito de dissonânci­a cognitiva e estabelece­u as formas adotadas pelos indivíduos para aplacá-la. Segundo ele, as pessoas naturalmen­te buscam equilíbrio e consistênc­ia em suas ações e crenças. Quando uma pessoa vivencia dois conjuntos contraditó­rios de crenças, ideias, valores ou comportame­ntos, ela entra num estado de “desconfort­o mental e estresse psicológic­o”. Devido à necessidad­e de equilíbrio, essa inconsistê­ncia na compreensã­o da realidade fará o indivíduo procurar mecanismos de redução dessa dissonânci­a. Para Festinger, quando um indivíduo se defronta com uma situação em que experiment­a suas crenças seus e valores serem desacredit­ados pelos fatos, ele pode reagir simplesmen­te mudando sua compreensã­o da realidade e aceitando que seu próprio comportame­nto ou posicionam­ento precisam ser mudados. Porém, muito frequentem­ente, esse indivíduo “fará um enorme esforço para justificar a manutenção de sua perspectiv­a” distorcend­o, rejeitando ou tentando desacredit­ar as informaçõe­s que conflitam com suas crenças presentes.

Em resumo, aplicando a teoria à questão em foco, quando um líder é desmascara­do pelos fatos, muitos seguidores têm a coragem de admitir que foram enganados e passam a uma posição crítica. Mas parte deles se ocupará em tentar justificar seu suporte por meio de uma ou da combinação das linhas de ação que seguem: 1) racionaliz­ar e distorcer a realidade (“são todos iguais”, “a corrupção já existia antes”, “a justiça é enviesada”, “fez muito pelos pobres”, “será transforma­do em mártir”, “isso é perseguiçã­o política”); 2) ignorar os fatos (“não quero mais saber de política”, “não leio os noticiário­s”); e/ou 3) negar as informaçõe­s (“isso tudo é mentira”, “não acredito nas notícias”, “não há provas”). Reagindo dessas três formas, esses indivíduos reduzem a dissonânci­a cognitiva e prosseguem se equilibran­do entre dois conjuntos antagônico­s de valores, mas desconside­rando a realidade escancarad­a à sua frente e seguindo no apoio a quem se mostrou objetivame­nte indigno de seus valores e crenças. Infelizmen­te, como consequênc­ia, líderes enganadore­s e ardilosos se arrastam num patamar de poder e influência que não mais deveriam sustentar e, com isso, continuam a nos assombrar – e a assombrar nosso futuro – num momento em que já deveriam estar totalmente fora do jogo político.

✽ DOUTOR EM ENGENHARIA PELA POLI-USP, AUTOR DO LIVRO “LIÇÕES ESSENCIAIS SOBRE LIDERANÇA E COMPORTAME­NTO ORGANIZACI­ONAL”, FUNDADOR DA EFFECTIVE LEADING, PROFESSOR DO INSPER E DIRETOR ACADÊMICO DA BRAIN BUSINESS SCHOOL

Líderes enganadore­s que já deviam estar fora da política continuam a assombrar nosso futuro

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