O Estado de S. Paulo

A realidade bate à porta do Vale

- PEDRO DORIA E-MAIL:COLUNA@PEDRODORIA.COM.BR TWITTER: @PEDRODORIA PEDRO DORIA ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Há uma passagem que salta aos olhos na longa entrevista concedida por Mark Zuckerberg a Ezra Klein, editora do site Vox, publicada na última segunda. “Quando começamos”, ele disse, “a gente só pensava sobre como seria se as pessoas pudessem se conectar, se todos tivessem uma voz. Para falar a verdade, não passamos muito tempo pensando no lado ruim dessas ferramenta­s.” Pareceu sincero. “Nos primeiros dez anos da empresa, nosso foco esteve no positivo.” Na terça, Nasim Aghdam, uma moça de 37 anos que faria 38 no dia seguinte, entrou no campus do YouTube, atingiu a três com uma pistola antes de cometer suicídio. De certa forma, num espaço muito curto de tempo, a realidade e o Vale do Silício entraram em choque.

Mas, antes, é preciso compreende­r o Vale.

Umas semanas atrás, Joan Baez, das canções de protesto dos anos 1960, anunciou sua aposentado­ria. Ela mora na mesma casa de Palo Alto há mais de 50 anos. Lembra dos tempos em que o negócio da região eram as plantações de laranja. A Palo Alto quando a conheci, na virada dos anos 1980 para os 1990, já era uma cidade de computador­es. E, ainda assim, um típico subúrbio americano com crianças de bicicleta, adolescent­es ganhando trocados para cortar grama, nas escolas tinha gente rica e pobre, e os pais alertavam para ninguém cruzar à noite para East Palo Alto, a cidade vizinha, muito perigosa. Acabou.

Foram-se quase todos os negros e os latinos das escolas públicas, que se encheram de indianos, chineses e japoneses. A cidade ficou cara demais. Muita gente que cresceu por lá, filhos e netos de gente daquele canto há um tempo cheio de laranjeira­s, teve de se mudar. As casas valiam muito, era milionário e bilionário demais querendo comprálas. Os impostos subiram, o preço do supermerca­do idem. Em algum momento, os Fords e Nissans velhos foram sendo substituíd­os por Teslas. Mesmo East Palo Alto, o canto mais pobre da região faz décadas, hoje é ocupado por engenheiro­s.

E, ainda assim, apesar da gentrifica­ção violenta, ainda é aquele cantão da Califórnia que em 1849 explodiu com a corrida do ouro. Um canto habituado há mais de século com muitas etnias e línguas. O berço da cultura hippie, onde o rock lisérgico dos Grateful Dead tocou primeiro, assim, claro, como Joan Baez. O Vale do Silício é um lugar de gente com cabeça aberta. O estereótip­o da startup de sucesso com suas salas de recreação, móveis multicolor­idos, espaços abertos nos campi podem parecer estranhos vistos de fora mas, ali, é natural.

Desta cultura nascida do encontro entre a cultura de engenheiro­s e a dos hippies, não poderia nascer outra coisa. A intenção de criar um mundo novo, melhor, com todos unidos. E houve uma explosão criativa em tecnologia. Basta ver o que construíra­m. O que ocorreu nas últimas semanas é que a realidade bateu à porta. E de uma forma brutal.

Uma pesquisa divulgada esta semana, da Ohio State University, calcula que notícias falsas divulgadas nas redes sociais podem ter custado a Hillary Clinton até 2,3% de votos nos Estados de Michigan, Pensilvâni­a e Wisconsin. É onde ela perdeu as eleições — por menos de 1%. O Facebook, na quarta, anunciou que não foram 50 milhões de perfis explorados pela Cambridge Analytica. Foram 87 milhões.

E a tragédia do YouTube foi provocada por uma moça desequilib­rada que tinha um canal de muitos acessos e que, numa mudança de algoritmo, perdeu tudo. Fazia dinheiro como youtuber — e parou num repente. As forças com que estas mudanças de algoritmo mexem, tanto com o ego quanto com o sustento das pessoas, são poderosas. Numa pessoa mais frágil, pode ser extrema. Some-se à cultura de um campus aberto, receptivo.

Semana dura.

O que ocorreu nas últimas semanas é que a realidade bateu à porta. De forma brutal

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