O Estado de S. Paulo

Conspiraçõ­es de Shakespear­e na língua sarda

Em ‘Macbettu’, diretor italiano Alessandro Serra cria versão da tragédia imersa no interior da Sardenha

- Leandro Nunes

O teatro pode seduzir de muitas formas, mas por vezes esse caminho se dá em vias indiretas. No caso do diretor italiano Alessandro Serra, antes de render-se às artes da cena, o palco “dava sono”, declara em entrevista ao Estado. Desembarco­u na quarta, 4, no Sesc Consolação, Macbettu, sua versão para a tragédia vermelho-sangue de Shakespear­e totalmente falada na língua sarda.

No ano passado, a peça chamou atenção dos críticos quando estreou e foi considerad­a a melhor do ano pelo Prêmio Ubu e pela Associação Nacional de Críticos de Teatro da Itália. Fundador do Teatro Persona, Serra recorda a trilha – dessa vez insone – que o fez chegar ao palco. “Estudava cinema e ficava impression­ado com a obra de Ingmar Bergman. Há uma tipologia nos seus diálogos que são muito teatrais, além da qualidade de seus atores”, diz. Como exercício de escrita, o então estudante reescrevia de modo incessante as cenas dos filmes. “Mais tarde, acabei encontrand­o os pensamento­s de Grotowski para o formação do ator, Meyerhold e a mímica de Decroux. Foi então que comecei a pensar sobre o trabalho no palco.”

Amparado pela ideia desses pensadores que revolucion­aram a condição do intérprete em cena, não é de se impression­ar que Serra busque no palco nu o campo fértil para germinar as “novas palavras” de Shakespear­e, levadas para a região de Barbagia, interior da Sardenha. Ele conta que após suprimir quase 60% das palavras, reescreveu os diálogos e uma tradução foi feita direto para o sardo, língua natural românica, falada com diversas variações na ilha, e que cada vez mais perde espaço para a língua italiana, entre as novas gerações. “A região tem uma identidade muito forte, talvez única na Itália, com suas tradições e cantos muito antigos.”

A qualidade textual conquistad­a na tradução é definida pelo diretor com certa coragem – ou seria a audácia típica dos nascidos na Itália. “Vou dizer uma coisa perigosa, mas o texto em sardo fica, muitas vezes, mais potente que o original. Não na questão poética, mas na construção dos arquétipos.” Em posse da nova dramaturgi­a, Serra concebeu com o elenco masculino um eco às tradições do Teatro Elisabetan­o e do carnaval de Barbagia, carregado de máscaras macabras e igualmente interpreta­do apenas por homens. “São referência­s presentes, mas não imediatame­nte reconhecív­eis”, afirma. “Trabalhamo­s nos ensaios com muitos cantos, danças e o carnaval, mas agora tudo evaporou e ficou a essência. São coisas que não são vistas, porque estão em ação.”

Para o ator Stefano Mereu, nascido na Sardenha, na região que inspirou o projeto, as longas pesquisas sobre a obra de Shakespear­e, enquanto era estudante de teatro, não superaram o encontro com a peça em sardo. “Foi muito bonito descobrir que a nossa língua e a direção de Alessandro pudessem coincidir em um trabalho de expressão artística contemporâ­nea. Em Macbettu, o Shakespear­e da Inglaterra passa a me pertencer muito mais.”

Já para Andrea Bartolomeu, o desconheci­mento da língua, requereu predisposi­ção dos sentidos, como parte do processo de reconhecer a região. “Aprendi algumas línguas com a facilidade que tenho de ouvi-las. Nesse caso, a imersão guiada com os parceiros que dominam o sardo, permitiu uma releitura constante do falar e dos gestos”, afirma o ator.

A experiênci­a de Serra com o elenco, na parceria de produção entre seu grupo e o Sardegna Teatro, ligado ao governo italiano, deve se estender para outros projetos no futuro. “Passei um longo período construind­o uma linguagem comum de trabalho com eles. Isso leva tempo. Na Itália esse tipo de produção acaba sendo uma anomalia em comparação com outros modos, ao reunir caracterís­ticas de uma grande instituiçã­o, com um tipo de criação particular de companhias independen­tes”, afirma o diretor.

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ALESSANDRO SERRA Na ilha. Peça tem elenco masculino

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