O Estado de S. Paulo

MINEIRA SOLITÁRIA PROCURA...

Documentár­io conta a história de psicóloga que usou anúncio no ‘Estado’ nos anos 1980 para curar solidão e achar alívio em São Paulo

- Guilherme Sobota

Documentár­io conta história da psicóloga Lúcia Ribeiro, que usou anúncio no Estado nos anos 1980 para vencer a solidão em SP.

Era setembro de 1982, e o Brasil ainda vivia nas cinzas de uma ditadura militar, quando Lourdes Lúcia Ribeiro decidiu escrever e publicar um anúncio no Estadão. Com o título “Mineira Solitária”, o bilhete explicava que ela estava sozinha em São Paulo. “A cidade me sufoca durante o dia e me isola à noite num pequeno apartament­o de bairro. Não sei o que fazer, não tenho a quem recorrer, às vezes chego quase ao desespero. Quero gente para conversar, quero pessoas a meu lado...”, dizia, deixando seu número de caixa postal.

Ela recebeu cerca de 500 cartas, entre conselhos, recomendaç­ões, pedidos de casamento, mensagens religiosas, indicações para os Neuróticos Anônimos, convite para um curso de Kung fu e cartas de detentos do interior do Paraná.

Trinta e cinco anos depois, a história é retomada: neste sábado, 7, a GloboNews exibe o documentár­io Mineira Solitária, escrito e dirigido por Renata Baldi com a ideia original de Liliana Junger e produção de Antonia Martinho. O filme de 50 minutos é exibido às 16h30 e depois entra na Globo News Play.

Junger, repórter da Globo News em Belo Horizonte, é sobrinha de Lúcia Ribeiro, e já havia feito um trabalho acadêmico sobre o tema, em 2010. Num pitching no canal em 2017, ela apresentou a ideia e foi acolhida.

Reservada, Lúcia brinca que chegou a rezar para Santo Antônio para que a ideia da sobrinha não fosse aceita, porque para ela ainda é difícil reviver a intensidad­e da experiênci­a.

Ela diz que esperava receber 10 cartas, porque era essa a média de respostas a anúncios desse tipo no jornal. “Depois, recebi tudo isso e foi uma loucura, não sabia o que fazer”, lembra, por telefone de Belo Horizonte, onde vive desde 2000.

“Quando comecei a ler as respostas, via as cartas e fazia crítica à letra, ao papel, ao que falavam. Depois, esse sentimento mudou e percebi que em cada papel tinha uma história, e elas começaram a mexer comigo. Me levavam a questionar a minha própria história”, explica.

Diferentes condições sociais e mesmo de escolhas de vida se confrontar­am com os próprios princípios de Lúcia. “Diziam: ‘Você tem dinheiro, mora num apartament­o, por que está reclamando?’ Disseram que eu estava à toa, que arranjasse um cachorro, pedidos de casamentos... eu não queria casar.”

O filme agora recupera personagen­s que enviaram cartas para Lúcia na época, em 1982.

Um deles é Hugo Pereira de Lima, que hoje vive em Piracicaba. Ele conta, no filme, que quando morava em Mogi das Cruzes, num barraco de madeira, escrevia cartas para pessoas imaginária­s e as pendurava na parede. Um dia, um encarregad­o da fábrica onde ele trabalhava viu as cartas e lhe concedeu uma promoção. “As cartas fizeram uma grande diferença na minha vida. Nunca vou parar de escrever”, garante.

A diretora Renata Baldi conta que a maioria das pessoas encontrada­s ficou muito feliz de reviver a história. “Para muitos, foi um momento bem difícil na vida, isso emocionou todas as pessoas. Até porque a solidão é um tema universal, que não muda, que está aí, vai ficar para o futuro. É um sentimento inerente ao ser humano. Vale a pena tocar nesse assunto”, recorda.

Um dos aspectos mais profundos do filme também diz respeito à transforma­ção pela qual o País passou nos últimos 35 anos. Apesar da grave crise política atual, é possível notar com a história do filme alguma ascensão social dos envolvidos. “Todos os personagen­s com certeza tiveram um ganho econômico. Não digo de classe social, não sei se dá para colocar nesse patamar, mas os anos 80 foram difíceis no Brasil. As histórias refletem um momento do País, associado à trajetória particular de cada personagem”, conta a diretora.

Lúcia Ribeiro, na época, era mestranda em psicologia na PUC São Paulo, com um projeto sobre educação física e autoestima. Quando recebeu as cartas, notou que ali havia um material rico para uma dissertaçã­o. “Se eu procurava saber o que era solidão, as cartas me levaram a entrar nela ainda mais profundame­nte”, revê, agora.

A dissertaçã­o apontou alguns caminhos, segundo Lúcia. “A solidão é um sentimento possível para qualquer pessoa e cada uma tem a sua vivência de solidão. Ela envolve passado, presente e expectativ­as futuras, porque é um volta a si mesmo. Ela não é definida: não é falta de gente ao redor. Ela parte da representa­tividade dessas pessoas para cada um, nossas escolhas, tudo o que envolve cada pessoa”, explica.

O assunto também foi tema de uma série de reportagen­s publicada pelo Estado em dezembro de 1982, feitas pelo repórter especial José Maria Mayrink, que segue ativo na redação do jornal. As reportagen­s depois foram transforma­das no livro Solidão, reeditado em 2014 pela Geração Editorial. “A solidão é a saudade da terra”, diz Mayrink no filme. Mas depois de anos escrevendo sobre o assunto, concede que cada caso é diferente.

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WASHINGTON ALVES/ESTADÃO Lúcia. Psicóloga publicou anúncio no ‘Estado’
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GLOBO NEWS
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No alto, à direita, página do ‘Estado’ com a matéria de Mayrink; no meio, o anúncio original; à direita, Liliana Junger e Lúcia Ribeiro
ACERVO ESTADÃO Fotos. No alto, à direita, página do ‘Estado’ com a matéria de Mayrink; no meio, o anúncio original; à direita, Liliana Junger e Lúcia Ribeiro
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ARQUIVO ESTADÃO Lúcia Ribeiro. Mestre em psicologia, ela voltou para BH, mas diz amar SP
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WASHINGTON ALVES/ESTADÃO

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