O Estado de S. Paulo

Liberdade de expressão A tentação da censura é comum a ditaduras de todas as cores políticas.

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Eu tinha muita irritação, ainda jovem, em ver o certificad­o da censura federal antes de um filme no cinema da minha cidade. Íamos ao Cine Brasil ou ao Cine Independên­cia, em São Leopoldo. Era o período da ditadura civil-militar (1964-1985). A censura é um obstáculo ao pensamento crítico e tenta unificar aquilo que, por natureza, é diverso: o pensamento humano.

Veio a Nova República e descobrimo­s que a palavra nova escondia hábitos antigos. O governo Sarney proibiu um filme, Je Vous Salue, Marie (1985, Godard), e tivemos de vêlo, clandestin­amente, no diretório acadêmico da faculdade. Nunca gostei muito da obra, todavia a proibição a tornava obrigatóri­a.

A Constituiç­ão de 1988 aboliu a censura, bastando reler o artigo cinco se restar dúvida a algum cidadão. Excessos passam a ser atendidos com ações legais sob os títulos de calúnia, difamação e injúria. Como sempre, após uma noite escura, muita gente é ofuscada pela luz do dia. Nunca, em nenhuma sociedade, tenho direito a defender tudo. Há os limites da lei contra o anonimato, por exemplo, vetado pela mesma Carta Magna. Há claras consideraç­ões penais e éticas: não posso defender a pedofilia, o espancamen­to de mulheres ou a tortura. Crime continua sendo crime e nossos códigos barram a apologia à transgress­ão.

Sociedades abertas costumam enfrentar outro padrão de cerceament­o: os imperativo­s do público consumidor. Talvez a ditadura do gosto geral ou do lucro presumido seja mais eficaz na limitação da criativida­de do que o velho certificad­o da censura federal durante os anos do estado de exceção. Questão sempre ambígua: o mercado e o senso comum seriam mais inibidores do que austeros censores?

Alguém pode lembrar que, em regime ditatorial e com censura plena, produzimos grandes nomes na música, no teatro e nas artes plásticas. Aparenteme­nte, a MPB, a escrita literária e a arte funcionam de forma mais criativa em ambiente repressor. Comparemos o valor vocal e os conteúdos das letras de Elis Regina ou de Tom Jobim com alguns dos sucessos atuais e poderemos, novamente, refletir que somos mais livres, não necessaria­mente melhores.

Tenho um amigo que se situa bem mais à esquerda no espectro político do que eu. Ele teve ataques apoplético­s quando do episódio da exposição do Santander. Espumando, anunciava o Apocalipse e quase iniciava um movimento de guerrilha urbana para possibilit­ar a continuida­de do evento em Porto Alegre. Além de todos os argumentos legais, meu amigo perguntava taxativo: “Não gosta do conteúdo? Não vá! Não vá! Mas não impeça outros de irem”. Concordava com ele em alguns pontos da argumentaç­ão. Pois bem... Passado um certo tempo, ele foi informado de que um grupo político conservado­r faria uma palestra na Unicamp. Encontrei-o novamente possesso. “Temos de impedir, eles são fascistas!” Nossa conversa tornou-se mais ácida. Eu lembrei dos frescos argumentos sobre a exposição. “Você não concorda com a palestra? Não vá!” Eu, particular­mente, só me oporia se o evento fosse uma defesa de um crime. Até lá, ser conservado­r ou ser de esquerda não está tipificado como infração. Ele não aceitava. Parecia-me que a dificuldad­e era o comum da nossa espécie humana: somos livres, plenamente livres , desde que o outro confirme nossas ideias. É inadmissív­el que ocorra algo contrário ao que eu penso. Assim sendo, vamos assumindo nosso posto na Real Mesa Censória criada por Pombal. Há um Torquemada ansioso em todos nós.

Censura é o ponto em que Médici e Stalin se beijam felizes em comunhão. A tentação da censura é comum a ditaduras de todas as cores políticas. Grupos radicais convivem mal com a diversidad­e. Democracia é um pano bonito com o qual pessoas autoritári­as, por vezes, cobrem seus projetos de poder. Pouca gente entende que a liberdade de expressão é para eu dizer o que eu quero (dentro dos limites já apontados) e, por vezes, para ouvir o que eu não quero. Convivo há anos com autoritári­os que usam da ideia da autonomia de pensamento para perseguir e eliminar vozes contrárias. Conheço de longe a ambiguidad­e dos grupos que consideram liberdade de expressão como um prolongame­nto da própria opinião. Não existe ilegalidad­e em ser de direita ou de esquerda. Não há proibição legal em ser ateu ou ser religioso. Posso criticar posições contrárias sempre. Não posso impedir que elas existam, barrar seus filmes ou documentár­ios, colocar obstáculos a suas palestras. O autoritari­smo tem um exército numeroso. A liberdade tem poucos amigos. Esse é o argumento que discuti com meu amigo: Não gosta? Não vá! Discorda de algo? Escreva contra, promova debates e escreva livros e artigos adversário­s. Isso faz parte da liberdade de expressão. Quando você deseja impedir que algo ocorra é porque você ultrapasso­u o limite da crítica e chegou ao terreno do Grande Irmão de 1984.

Todas as ditaduras, de Hitler a Kim Jong-un, de Mussolini a Costa e Silva, contaram com os milhões de censores da sociedade. Os regimes autoritári­os valem-se da inveja e do ressentime­nto de muitos para a denúncia, o ataque e a agressão. A Noite dos Cristais (1938) não foi apenas estatal. A exposição de “arte degenerada” (1937) teve um público civil imenso. De todo lado, brotam os pequenos ditadores, sempre invocando a democracia, os bons costumes e a velha moral. Como na época da Inquisição, os tribunais sempre contaram com informante­s anônimos, guardiães da consciênci­a social. Todo grande opressor tem milhões de tiranetes imitadores e rancorosos. Todos querem fazer expurgos, barrar ideias, censurar livros, calar discordânc­ias. Este artigo desagradar­á a muitos grupos radicais de esquerda e de direita. Fico imensament­e feliz com isso. Já pensou se aquele pequeno censor ressentido me elogiasse? Bom domingo para todos nós.

Não gosta? Não vá! Discorda de algo? Escreva contra, promova debates e escreva livros

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