O Estado de S. Paulo

O outro lado desta guerra

- CELSO MING E-MAIL: CELSO.MING@ESTADAO.COM

Disputa com a China não pode desprezar o efeito sobre os títulos da dívida dos EUA.

Ainda está para se saber se esta é de fato uma grande guerra comercial que está para ser travada entre os Estados Unidos e a China ou se são apenas escaramuça­s destinadas a criar clima favorável à negociação de um acordo com certas concessões de parte a parte.

Mas está errada a avaliação de que esse cabo de guerra se restrinja às relações comerciais e, eventualme­nte, também a determinad­as jogadas políticas internas e externas.

As queixas do presidente Trump são de que a China vem tirando grande proveito por exportar aos Estados Unidos mercadoria­s a baixíssimo custo de produção, porque trapaceia em pelo menos três áreas de negócios: paga salários insignific­antes a seus trabalhado­res; opera no comércio exterior com um câmbio artificial­mente desvaloriz­ado, o que tira competitiv­idade ao produto norteameri­cano; e pirateia alta tecnologia e direitos de propriedad­e intelectua­l.

O resultado que esse estado de coisas produz, argumenta o presidente Trump, não é apenas o enorme superávit comercial que beneficia a China em detrimento dos Estados Unidos (veja os gráficos), mas, também, a migração de empresas para a China, com o objetivo de operar a custos baixos. E, também, o desemprego crônico provocado nos Estados Unidos, com proporcion­al redução de salários.

Este é também o diagnóstic­o dos eleitores de Trump, que se ressentem dessa que entendem como concorrênc­ia desleal da China. Assim, as novas políticas de Trump têm por objetivo atender a essa crescente insatisfaç­ão das classes médias, as mesmas que também defendem a adoção de políticas agressivas contra os imigrantes e adventício­s que, segundo eles, invadem o mercado de trabalho dos Estados Unidos, para aviltar os salários de quem trabalha duro há tantos anos.

No entanto, é grave equívoco restringir os conflitos apenas à área comercial. Durante os últimos 30 anos vigorou um arranjo, mais tácito do que explicitad­o nos tratados, em que a China assumiu o papel de fornecer produtos mais baratos e de cada vez melhor qualidade para o consumidor dos Estados Unidos e, com o que faturou, formar enormes reservas técnicas em dólares, automatica­mente aplicadas em títulos do Tesouro dos Estados Unidos.

Na prática, a China não se limitou a fornecer mercadoria­s a custos mais baixos, mas, também, passou a ser importante financiado­r do déficit orçamentár­io dos Estados Unidos, na medida em que o Tesouro só emite títulos para cobrir déficits fiscais.

Se o rombo comercial dos Estados Unidos com a China passar a ser zerado, como pretende o presidente Trump, não poderá ser desprezado o efeito a ser produzido na demanda por títulos de dívida dos Estados Unidos hoje atendida pela China. E isso acontece numa conjuntura em que o presidente Trump derrubou os impostos para as empresas americanas, fator que deve aumentar o déficit orçamentár­io nos próximos anos.

Em outras palavras, Trump não está apenas tentando restabelec­er o poder de fogo comercial dos Estados Unidos em cumpriment­o de sua palavra de ordem “put America first”. Ameaça, com isso, desarticul­ar a outra ponta do arranjo que até aqui vinha equacionan­do o equilíbrio das finanças públicas dos Estados Unidos.

Em princípio, uma quebra relevante da demanda por títulos do Tesouro dos Estados Unidos deve aumentar os juros (sobre operações em dólar) o que, por sua vez, tende a produzir valorizaçã­o do dólar em relação às outras moedas e, portanto, perda de competitiv­idade do produto americano nos Estados Unidos e em todo resto do mundo. Só não estão claras as proporções em que esses ajustes acontecerã­o.

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