O Estado de S. Paulo

‘Prendemos Lula, votamos nele e nos decepciona­mos’.

Trinta e oito anos depois, policiais do Dops contam que petista e colegas tiveram tratamento diferente do reservado a presos políticos

- Marcelo Godoy

Era uma madrugada com cerração quando bateram na porta da casa do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. Policiais do Departamen­to de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo mandaram abrir. Não queriam deixá-lo nem mesmo trocar de roupa. Os metalúrgic­os da região do ABC estavam em greve havia 17 dias e o regime militar resolvera endurecer: mandara prender toda a diretoria do sindicato. Lula e mais uma dezena de operários foram conduzidos ao prédio de tijolos vermelhos do Largo General Osório, no centro da cidade.

O delegado Armando Panichi Filho se lembra do dia 19 de abril de 1980. “Todos foram muito bem tratados pelo doutor Romeu”, afirmou o homem de confiança do então diretor do Dops, o delegado Romeu Tuma. O próprio Lula em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV) confirmou a afirmação de Panichi. Nenhum dos presos enfrentou a tortura reservada aos presos políticos.

Era a primeira prisão de Lula no regime militar. A ditadura se encaminhav­a para o fim e se abrandara. A cela dos sindicalis­tas tinha rádio e o grupo recebia jornais. A comida era entregue

pela Igreja ou vinha do restaurant­e do Dops. “Era o trivial”, conta o delegado José Arruda. Muitas das visitas de advogados, familiares e políticos eram feitas no 4.º andar do prédio, que abrigava a direção do departamen­to. “O Tuma pôs a sala de reuniões à disposição dos presos”, disse Arruda.

Visitas. Foi ali que outro veterano do Dops, o delegado Massilon José Bernardes, encontrou o sindicalis­ta. Na época, Massilon trabalhava no Serviço Nacional de Informaçõe­s (SNI). “O Franco Montoro e o (Eduardo) Muylaert foram para lá.” Futuro governador de São Paulo, Montoro era

senador pelo PMDB – Muylaert seria seu secretário de Justiça. “Ia muita gente dos órgãos de informação ao Dops para saber do Lula, estabelece­r seu perfil. Era um trabalho de analista.”

Um dia, Tuma chamou Panichi ao seu gabinete e fechou a porta. Queria saber se ele e o investigad­or Oswaldo Machado podiam levar Lula para visitar a mãe, Emília Ferreira Melo, a dona Lindu, que estava doente. “Tiramos Lula pelos fundos e o levamos para a visita em sigilo, sem autorizaçã­o da Auditoria Militar.” A visita foi de madrugada. Em 12 de maio, então com autorizaçã­o da Justiça, Panichi escoltaria novamente Lula sem algemas em um Chevette. Desta vez, levou-o até o enterro de dona Lindu, no cemitério da Vila Pauliceia, em São Bernardo. Desarmados, os policiais foram cercados por uma multidão que gritava: “Soltem o Lula!” Panichi lembra que ficou ao lado dele e depois o levou de volta para a carceragem.

Ali na cadeia estava Enílson Simões de Moura, o Alemão. Sindicalis­ta e militante do MR-8, Alemão foi um dos últimos da diretoria a ser capturado pelo Dops. Foi apanhado depois de se refugiar no gabinete do prefeito de São Bernardo do Campo, Tito Costa (PMDB), após uma negociação entre o senador Teotônio Vilela (PMDB-AL) e o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel.

“Me deixaram na solitária durante uma semana, pois o Tuma tratava de forma diferente os sindicalis­tas sem militância dos que pertenciam a alguma organizaçã­o, como eu”, disse. Depois, transferid­os para cela dos demais presos – Lula e mais 11 –, Alemão também recebia suas visitas no 4.º andar. “Não tivemos o tratamento que antes era reservaram aos presos políticos.”

No Dops, Lula começou a doutrinar os policiais. Um dia, Tuma o surpreende­u. O diretor se irritou e ameaçou retirar rádio e jornais dos presos. Ficou na ameaça. “Ele (Lula) tinha uma liderança incrível. Eu mesmo votei nele em 2002. Acreditava nele ainda. Me decepcione­i”, contou Massilon. Não foi o único. Arruda repetiu o gesto do colega na eleição. “Contradize­ndo tudo o que havia feito na vida.”

Trinta e um dia depois, todos os sindicalis­tas foram soltos. Alemão e Lula acabaram condenados pela 2.ª Auditoria Militar a 3 anos e meio de prisão e seriam uma vez mais presos no regime militar em razão dessa condenação. A prisão, dessa vez, durou um dia e nem mesmo para a carceragem foram levados. “Ficaram todos na diretora”, disse Arruda. Soltos, o processo foi transferid­o da Justiça Militar para a Federal e prescreveu antes de ser julgado.

 ??  ??
 ?? CLOVIS CRANCHI/ESTADÃO–13/5/1980 ?? Escolta. Panichi (de óculos) ao lado de Lula no enterro
CLOVIS CRANCHI/ESTADÃO–13/5/1980 Escolta. Panichi (de óculos) ao lado de Lula no enterro
 ?? REGINALDO MANENTE/ESTADÃO–19/11/1981 ?? Tribunal. Julgamento de Lula na Justiça Militar em 1981
REGINALDO MANENTE/ESTADÃO–19/11/1981 Tribunal. Julgamento de Lula na Justiça Militar em 1981

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil