O Estado de S. Paulo

O PADRE QUE SALVOU DO EI PARTE DA HISTÓRIA

Obras raras do Iraque viajaram escondidas sob refugiados, que as protegeram até sob ataque

- Jamil Chade

Oinfernal verão no Iraque, em 2014, prometia ser um dos mais quentes da história. Mas, para a população de certas cidades com minoria cristã, a maior preocupaçã­o era o temor de que suas casas fossem queimadas e destruídas pelo Estado Islâmico, grupo radical que ganhava terreno a cada semana.

No dia 6 de agosto, diante da iminente invasão pelos jihadistas, um homem decidiu não mais esperar. Lotou seu modesto carro e um pequeno caminhão com centenas de documentos e partiu de Qaraqosh, no norte do Iraque, para um exílio no Curdistão.

O padre Michael Najeeb não estava apenas salvando sua vida. Levava consigo manuscrito­s raros sobre o Oriente Médio, ameaçados se caíssem nas mãos do EI. Em 2007, ele já havia retirado aquele tesouro de Mossul e transferid­o para Qaraqosh, também em razão da intolerânc­ia de grupos radicais.

Quando o EI finalmente entrou em Qaraqosh, o tesouro já havia desapareci­do. Ou estava escondido. “Sabíamos que, com eles, não havia diálogo. Davam 24 horas para que as pessoas se convertess­em. Caso contrário, era partir dali ou morrer”, disse o padre.

No total, ele levaria consigo 8 mil manuscrito­s e 40 mil documentos, muitos deles sobre a Mesopotâmi­a, alguns dos primeiros livros escritos na região e peças de um valor incalculáv­el sobre as Cruzadas.

Entre os manuscrito­s que ele salvou estão relatos e dados dos caldeus, sírios, armênios e diversos outros povos. Os arquivos ainda contavam com 850 manuscrito­s antigos em aramaico e estavam no convento de Al-Saa, em Mossul, um front da batalha entre as forças iraquianas e o EI.

Em passagem por Genebra, o sacerdote contou ao Estado que, com a ajuda de outros religiosos, embrulhou os manuscrito­s e os colocou em caixas. Ao colocá-las no caminhão, pediu que os refugiados sentassem sobre elas, na esperança de escondê-las em eventuais controles. “Ali estavam exemplares antigos da Bíblia, do Alcorão, textos de astronomia, de medicina, dicionário­s e documentos em mais de dez línguas”, afirmou.

Em fuga. Em vários trechos da viagem, sua estratégia funcionou. Os controles pensavam que, nas caixas estavam roupas e pertences dos refugiados. Entre Kalak e o Curdistão, porém, seu comboio foi alvo de um ataque. Eles sobreviver­am graças às operações dos combatente­s peshmergas.

O grupo teve de seguir à pé, abandonand­o os carros. Cada um deles levava uma caixa e, a cada refugiado que fazia parte do caminhão, o padre lhe entregava um pouco daquele tesouro. “Eu pedi que cada um devolvesse aquilo, uma vez que estivessem já em Irbil. Todos cumpriram suas promessas”, disse.

Em Irbil, o sacerdote dominicano passou a digitaliza­r os tesouros e garantir que, mesmo

diante de uma eventual nova guerra, o passado de uma parte importante da humanidade não seja destruída. “Não podemos salvar a humanidade se não salvarmos sua história”, disse o padre, que esteve na Suíça, na semana passada, para negociar e assinar um acordo global para a preservaçã­o de patrimônio­s culturais.

Os manuscrito­s não eram novidade para ele. Há 25 anos, ele tem percorrido a região para identifica­r e preservar esses documentos em mosteiros e instituiçõ­es iraquianas.

A coleta dos documentos também ocorria em vilarejos. Segundo o padre, alguns registros raros foram doados por uma mulher que explicava que os usava para cozinhar seu pão. “Ela garantia que os pães ficavam deliciosos”, disse.

O sacerdote estava na lista de personalid­ades religiosas que deveriam ser assassinad­as mesmo antes da existência do EI. Seu problema original eram os combatente­s da Al-Qaeda que, entre 2004 e 2010, mataram pelo menos seis religiosos na cidade de Mossul.

Destruição. Se salvou milhares de páginas de manuscrito­s, o padre lamenta que um número ainda maior tenha sido destruído pelo EI em três anos de controle da região. Hoje, ao retornar para Mossul já liberada, ele descobriu que sua igreja foi totalmente destruída. No lugar do altar onde celebrava missas, uma forca havia sido colocada pelos jihadistas para matar seus opositores.

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SAFIN HAMED/AFP Salvador. Padre Michael Najeeb exibe um manuscrito do século 16, parte das centenas de documentos que resgatou

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