O Estado de S. Paulo

Justo ou justificáv­el?

- DANIEL MARTINS DE BARROS f acebo ok/ daniel barros psiquiatra

Pensar dá muito trabalho. Só para dar uma ideia, embora o cérebro represente muito pouco de nossa massa corpórea – não chegando a pesar dois quilos –, ele consome cerca de 20% de nossa energia, demandando sozinho 15% do fluxo de sangue do organismo. Essa voracidade toda talvez explique por que fazemos de tudo para não pensar. Sabendo do esforço que é produzir um pensamento, o cérebro joga o que pode para o piloto automático, poupando-nos de ter de raciocinar o tempo todo. A cena é familiar: estamos voltando do trabalho para casa, percorrend­o aquele caminho de sempre e, de repente, parece que despertamo­s ao chegar ao portão.

A sensação é de que o cérebro entrou em modo de descanso enquanto íamos automatica­mente pelos caminhos que fazemos sem pensar. Na verdade não se trata de mera sensação – de fato somos capazes de compactar grandes sequências de comportame­ntos em módulos automático­s, que não dependem de reflexão consciente para serem realizados. Ou seja, a maioria das coisas rotineiras nós fazemos sem nos dar conta.

Essa avareza energética cerebral não se limita a tarefas motoras, no entanto. Mesmo nos processos decisórios, quando imaginamos estar sendo racionais e deliberado­s, na maioria das vezes as decisões são automática­s, influencia­das por fatores dos quais nem sequer temos consciênci­a. É o que os diversos cientistas que estudam comportame­nto – de economista­s a psicólogos – chamam de heurística­s. São atalhos mentais, utilizados para decidir diante de informaçõe­s incompleta­s ou diante do excesso de informaçõe­s.

Ou seja, sempre. Pois raros são os momentos em que temos todos os dados que precisamos – e apenas eles – para decidir de forma totalmente racional. Estereótip­os, palpites, senso comum, são todas heurística­s que usamos no dia a dia para nos poupar da desgastant­e tarefa de pensar.

Pode parecer uma ameaça à nossa autoimagem de seres racionais. E, de fato, não gostamos nem um pouco dessa sensação – tanto é assim que adoramos justificar nossas opiniões, posturas e deliberaçõ­es como se fruto fossem do mais intenso labor intelectua­l.

Mas isso não passa de maquiagem. Os estudos de economia comportame­ntal e psicologia da decisão provaram repetidas vezes que as justificat­ivas que apresentam­os para nós mesmos são meras tentativas de explicar racionalme­nte o que intuitivam­ente acreditamo­s ser o certo, o melhor, a direção a seguir.

Quando o sujeito se põe a encadear ideias atrás de ideias, alinhavand­o-as com explicaçõe­s elaboradas para dizer por que é a favor do aborto, contra o casamento gay, pró-armamento ou anti-imperialis­ta, não se iluda.

Ele não está explicando como considerou profundame­nte cada um dos argumentos de um lado e de outro da questão e, após ponderar durante longos períodos de introspecç­ão, finalmente chegou àquela conclusão. Ele está apenas mantendo – para si mesmo – as aparências de ser racional. A convicção do sujeito é anterior, consequênc­ia quase inescapáve­l do seu ambiente cultural, das influência­s intelectua­is a que foi exposto, da formação educaciona­l que teve ao longo da vida, das tendências manifestas dos amigos a quem respeita. O trabalho da razão é só encontrar as razões dessa decisão.

Esse processo poucas vezes foi tão bem ilustrado como vem acontecend­o nos julgamento­s do Supremo Tribunal Federal. Atualmente, quando parece que não somos mais capazes de decidir entre vinho branco ou tinto sem recorrer ao STF, os ministros ganharam papel de destaque na sociedade como guias do que é ou não justo.

Mas, ao nos depararmos com votos tão contrários uns aos outros, mencionand­o os mesmos artigos constituci­onais sem vergonha de lhes dar interpreta­ções diametralm­ente opostas, percebemos que qualquer coisa parece ser justificáv­el. Basta enumerar argumentos suficiente­s. O trabalho dos ministros não é, fica claro, buscar na lei fundamento­s para então decidir. Eles primeiro decidem e, então, buscam na lei fundamento­s que os justifique­m.

A culpa não é deles. É assim que todos decidimos. Seja entre casar ou comprar uma bicicleta, seja entre prender ou não alguém condenado em segunda instância.

Tentamos racionalme­nte explicar o que achamos ser o certo apenas intuitivam­ente

É PSIQUIATRA

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