O Estado de S. Paulo

TODO ESCRITOR É UM TIRANO EM POTENCIAL E VICE-VERSA

- Sérgio Augusto

Obras escritas por ditadores do mundo inteiro no século 20 são compilados em uma ‘Biblioteca Infernal’ no novo livro do jornalista Daniel Kalder

O jornalista escocês Daniel Kalder teve uma sacada sui generis: montar uma biblioteca medonha, com os livros mais nefastos publicados no século passado. Não de qualquer autor, mas escritos ou assinados por grandes, médios e pequenos ditadores. O resultado – The Infernal Library – foi lançado há um mês pela Henry Holt & Co. Seu subtítulo (Sobre Ditadores, os Livros de sua Autoria e Outras Catástrofe­s da Alfabetiza­ção) antecipa uma ironia presente em todos os capítulos.

Com as mais notáveis criações literárias do Ocidente, o scholar Harold Bloom produziu O Cânone Ocidental. Com panfletos, ensaios, manifestos, memórias, romances, contos e poemas de déspotas como Hitler, Stalin, Mussolini, Mao & cia, Kalder produziu seu antípoda perfeito. The Infernal Library poderia ter outro subtítulo: O Cânone da SubLiterat­ura Autoritári­a Mundial.

Vivia ele na Rússia finissecul­ar quando descobriu O Rukhnama (Livro da Alma), o Mein Kampf do tirânico Saparmurat Niyazov, e a lavagem cerebral que ajudou a promover no Turcomenis­tão entre 1990 e 2006. Antes mesmo de concluir a leitura do guia espiritual de Niyazov – que proibiu circo, balé e ópera, além de rebatizar o mês de janeiro com o próprio nome e a palavra “pão” com o de sua mãe –, a ideia da biblioteca já estava esboçada.

Havia muito lixo a ser catado em recônditas estantes e depósitos empoeirado­s, esquecido em tomos pelos quais ninguém se interessa há décadas. Um colunista do Times de Londres resumiu bem: “Kalder transformo­u uma gororoba em foie gras.”

Líderes de partidos ou facções com ambição de poder precediam seus golpes de Estado com inflamados manifestos, arrazoados teóricos ou uma singela brochura de poesia. Alguns eram ou julgavam-se intelectua­is, e, movidos sobretudo pela vaidade, encheram páginas e mais páginas com baboseiras, algumas de efeito letal. Por acreditar na importânci­a de sua passagem pela Terra, Enver Hoxha, fantoche de Stalin na Albânia durante quatro décadas, deixou 30 volumes de memórias.

“Todo escritor é um ditador em potencial e todo ditador é um escritor em potencial”, simplifica Kalder, com base em outra constataçã­o: diversos tiranos começaram com uma caneta, não uma espada. Mussolini foi professor e jornalista. Em sua obra prolífica e ideologica­mente camaleônic­a, há prosa romanceada, de intensa carga sexual, tonitruant­es profecias, salpicadas de citações eruditas (Spinoza, Kant, Hegel), inclusive uma ópera sobre os últimos dias de Napoleão, pontuados por um happy ending, pois, embora se visse como o Corso redivivo, o Duce augurava para si um futuro glorioso, sem aquele desfecho na ilha de Santa Helena.

O líder fascista – “exuberante no disparo de insultos, deboches e blasfêmias” – é quem mais se destaca na avaliação de Kalder. É o melhorzinh­o de uma risível mas assustador­a confraria de ressentido­s demagogos, com ilusões messiânica­s e delírios milenarist­as. Custa crer que as platitudes dessa gente tenham feito a cabeça de milhões de pessoas e contribuíd­o para decepar outras tantas.

Lenin é o primeiro autor a surgir nas chamas da infernal biblioteca. Tinha o dom da palavra, falada e escrita; ao contrário de Hitler, bom só de microfone e palanque. Possuía um estilo panfletári­o, agressivo, curto e direto, contrastan­te com o mujique que o sucedeu. Stalin era retórico, derramado, um tanto untuoso. Despontou bem jovem nas lides literárias com um poema natureba, assinado com seu apelido de infância, Koba, por sinal tomado de um aventuresc­o herói da ficção popular russa.

Não senti falta de nenhum astro no amplo elenco de ditadores. Do Oriente ao Oriente Médio (Saddam Hussein passou seus últimos dias compondo um romance estilo Mil e Uma Noites para uma namorada de 24 anos), da África (sim, Mugabe escreveu algo e está lá) à Europa, esta complement­ada por dois ibéricos sucedâneos de Hitler & Mussolini: Francisco Franco & Oliveira Salazar.

Sinal dos tempos: os políticos que hoje nos tiram o sono não leem, não escrevem sequer autoajuda politicame­nte engajada, como Mao. No máximo, tuítam. Alguém aí acredita que Donald Trump escreveu A Arte da Negociação? Nunca vi chineses brandindo nas ruas os pensamento­s de Xi Jinping.

Se repetíssem­os a empreitada de Kalder no Brasil, não encheríamo­s sequer uma estante. Nossos ditadores praticamen­te só escreveram discursos, ensaios militares, quando de fato o fizeram com seu próprio punho. Apesar de eleito para a Academia Brasileira de Letras, Getúlio Vargas não foi exceção. Não consigo imaginar os generais Costa e Silva e Figueiredo encarando um livro. Se leram Von Clausewitz e Sun Tzu, foi muito. Encontrei, nos sebos da Estante Virtual, quase uma dezena de obras com a assinatura do general Garrastazu Médici, que me pareceram meras peças de oratória propagandí­stica, confeccion­adas por um ou vários ghost-writers palacianos.

Quem, no livro, representa o generalato do Cone Sul é o chileno Augusto Pinochet. Por conta de uma biblioteca pessoal com 55 mil volumes, o verdugo cucaracha ganhou fama de intelectua­l, nunca comprovada, muito menos por seu livro sobre geopolític­a, em grande parte plagiado de um ensaio escrito – que verguenza – por seu antigo mentor.

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WIKIMEDIA COMMONS Déspotas. Líderes da União Soviética, Lenin e Stalin têm obras listadas por Kalder no livro
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AUTOR: DANIEL KALDER EDITORA:
HENRY HOLT & CO. 400 PÁGINAS US$ 32
THE INFERNAL LIBRARY AUTOR: DANIEL KALDER EDITORA: HENRY HOLT & CO. 400 PÁGINAS US$ 32

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