O Estado de S. Paulo

A OSCILAÇÃO ENTRE O SUBLIME E O GROTESCO

- Rodrigo Petronio

Quando um jornalista perguntou como fora seu encontro com Goethe, Heinrich Heine (17971856) teria respondido: “A cerveja de Weimar é muito boa”. Essa e outras anedotas atribuídas ao grande poeta de Atta Troll (1844) o colocam como expoente de um fenômeno mais amplo: o combate judaico contra o proselitis­mo da cultura europeia dominante. Um protagonis­ta da luta eterna entre o pequeno Davi contra o gigante Golias. Heine foi um dos grandes cínicos, descrito por Sloterdijk como um Diógenes circuncida­do.

Filho de comerciant­es de Düsseldorf e financiado durante muito tempo pelo tio Salomon, banqueiro de Hamburgo, Heine desde cedo detectou o exclusivis­mo dos círculos intelectua­is. E o tratamento diferencia­do dado pela alta cultura europeia aos judeus. Por esse motivo, adentrou os estudos de história judaica na Universida­de de Göttingen, onde se doutorou. E concentrou sua artilharia sobre a falsidade da vida intelectua­l, chegando a propor duelos e a envolver-se em brigas que iam às vias de fato. Como poeta, conseguiu decantar um lirismo de simplicida­de e sublimidad­e singulares que se tornou uma referência da poesia de língua alemã.

A cuidadosa edição da novela Noites Florentina­s (1836), levada a cabo pela Carambaia e com excelentes tradução, posfácio e cronologia do escritor Marcelo Backes, iluminam outros aspectos dessa obra multifacet­ada: o erotismo, a ironia e a estrutura ficcional. Em torno de um enredo quase inexistent­e, a novela se concentra em Maximilian, libertino que se hospeda no quarto da amiga Maria, gravemente enferma, para lhe contar histórias, quase todas entre o picante, o estranho e o obsceno. Detalhe: Maximilian é pigmaliôni­co (tem desejo sexual por estátuas). E essa é a condição instaurada por Heine para fazer uma humorada crítica ao culto à arte, ao mito da Itália como berço da cultura, aos costumes (os ingleses e franceses são achincalha­dos) e ao fetichismo dos salões e dos intelectua­is.

O grotesco também compõe diversas cenas e figuras dessa alcova imaginária. Entre relatos eróticos e humor sardônico, a trupe dos aventureir­os liderada por Maximilian conta com monsieur Türlütü, um anão de cara velha e corpinho infantil, que canta como um galo e se une a mademoisel­le Laurence. Ambos seguem o ritmo de madame Mãe, ao som de um triângulo e de um imenso tambor. Entre o festivo e o escárnio, Heine situa no centro de seu universo mental personagen­s que seriam considerad­os secundário­s em qualquer obra canônica. Os pronomes de tratamento reforçam o recurso à caricatura. Esta gera uma estranha ambiguidad­e. Enquanto todas as narrativas são alimentada­s por referência­s à música, às artes visuais e à literatura, um subtexto grotesco relativiza e desloca o valor estabiliza­do desses signos. As referência­s misóginas presentes no texto precisam nesse sentido ser compreendi­das dentro da especifici­dade desse estranho narrador em primeira pessoa, uma mescla de Tristram Shandy e Casanova.

Não por acaso, essa mescla de gêneros, essa oscilação entre sublime e grotesco e essa atitude irônica e negativa diante da arte e da vida, situam Heine, ao lado de Kleist, como um importante desbravado­r de caminhos da literatura moderna e uma referência para os expression­istas do começo do século 20. Diante dessa natureza polêmica e beligerant­e, Heine sofreu ameaças de prisão, a ponto de ter que deixar a Alemanha. Morreu em Paris depois de oito longos anos na cama em agonia, talvez em decorrênci­a da sífilis. Em Os Deuses no Exílio (1854), o poeta parte de uma premissa interessan­te. A tradição judaico-cristã, ao conceber um Deus transcende­nte, teria esvaziado a natureza de deuses. A concepção é semelhante ao que Hölderlin define como a grande “noite dos deuses”.

Contudo, diferente de Hölderlin, de Goethe, de Schiller, de Schelling, de Hegel, dos irmãos Schlegel e de todos os românticos e idealistas alemães, o judeu Heine não viveu esse exílio como conceito. Viveu-o na própria carne. Assemelha-se mais a um fauno exilado da cultura europeia do que a um representa­nte da idealizaçã­o, cristã e apolínea, de uma Grécia que nunca existiu. Backes nos lembra da brilhante e reveladora intuição de Adorno: falar de Heine é falar de uma ferida. A obra de Heine é o testemunho dessa ferida que, sublimada em arte, sobrevive à exclusão e consegue por fim dominar o seu dominador.

É ESCRITOR E FILÓSOFO, DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA (UERJ) E PROFESSOR TITULAR DA FAAP

Erotismo, mescla de gêneros e humor marcam a novela ‘Noites Florentina­s’, do poeta alemão Heinrich Heine, o último dos românticos

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WIKIMEDIA COMMONS O autor. Heinrich Heine é ‘o último dos românticos’ na Alemanha
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MARCELO BACKES
EDITORA: CARAMBAIA 112 PÁGINAS
R$ 68,90
NOITES FLORENTINA­S AUTOR: HEINRICH HEINE TRADUÇÃO: MARCELO BACKES EDITORA: CARAMBAIA 112 PÁGINAS R$ 68,90

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