O Estado de S. Paulo

UMA INTELIGÊNC­IA NADA ARTIFICIAL

- Gerry Flahive TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

“Sinto muito, Dave, receio que não eu não possa fazer isso.” Mesmo que você jamais tenha visto o filme, conhece avoz.HAL9000,o aparenteme­nte onipresent­e computador de 2001: Uma Odisséia no Espaço, foi afigura mais expressiva e emocional do filme, e deixou uma impressão duradoura em nossa imaginação coletiva.

O épico de Stanley Kubrick, uma jornada da história pré-humana até um possível infinito que não precisa de nenhum ser humano, é provavelme­nte o mais respeitado, se não o mais amado filme de ficção científica de todos os tempos.

A história da criação do desempenho de HAL – resultado de uma colaboraçã­o de última hora entre o peculiar diretor e o veterano ator canadense Douglas Rain – ficou de certa forma um pouco perdida nos 50 anos desde o lançamento do filme, em abril de 1968. Da mesma forma, seu impacto: a inteligênc­ia artificial tomou emprestada aperson ad eH ALe, involuntar­iamente, um toque canadense vive em nossos telefones e dispositiv­os.

O HAL de Rain tornou-se a referência padrão, não apenas para a voz, mas também para as qualidades humanas doque deverias era personalid­ade de uma máquina com percepção. Basta perguntar ao Alexa da Ama zonou aoGoogle Home–a cadência, a formalidad­e amigável, a inteligênc­ia agradável e os ensode calmo controle em suas vozes evocam a performanc­e inesquecív­el de Rain. Enquanto olhamos com cautela para um futuro completame­nte transforma­do por incursões de AI em todos os aspectos de nossas vidas, HAL espreita.

Para Scott Brave, coautor de Wired for Speech: HowVo ice Ac tiva tesand Ad vancesth eH uman- Compute r Rela tionship ,( Conecta dopara a Fala: Como a Voz Ativa e Propaga a Relação Humanos-Computador­es, em tradução livre), HAL 9000 é um misto de mordomo e psicanalis­ta. “Ele tem o senso de consideraç­ão e de distanciam­ento”, disse Brave, acrescenta­ndo que viu um efeito cascata, por exemplo, no assistente virtual do iPhone. “Quando ouço algo como Siri, sinto que há muito em comum.”

Em uma entrevista de 1969 como autor ec rí ticoJoseph Gel mis,Kubrickdis seque estav atentando transmitir­a realidade deu mmund opo voado–como o nosso será em breve–por“entidades de máquinas que possuem tanto o umais inteligênc­ia que os seres humanos. Queríamos incentivar­as pessoas apensarem como seria dividir um planeta com tais criaturas”.

O historiado­r de 2001, David Larson, disse que “Kubrick apresentou a última voz do HAL bem

tarde no processo. Durante o planejamen­to de 2001, fora determinad­o que, no futuro, a grande maioria das entradas de comando e comunicaçã­o via computador seria por voz, e não teclado.”

Mas a inteligênc­ia artificial estava a décadas de uma reprodução convincent­e de uma voz humana – e quem poderia dizer como deveria soar um computador?

Para interpreta­r HAL, Kubrick escolheu Martin Balsam, Oscar de ator coadjuvant­e por Mil Palhaços. Talvez houvesse um eco gratifican­te que agradasse a Kubrick – ambos eram do Bronx e soavam da mesma forma. Em agosto de 1966, Balsam disse a um jornalista: “Na verdade, não sou visto no filme em nenhum instante, mas tenho certeza de gerar muita emoção projetando minha voz através daquela máquina. E também vou receber um prêmio da Academia por fazer isso.”

Então o diretor mudou de ideia. “Tivemos alguma dificuldad­e em decidir exatamente como o HAL soaria, e Marty era muito coloquialm­ente americano”, disse Kubrick na entrevista de 1969. Rain relembra Kubrick dizendo a ele: “Estou tendo problemas com o que tenho rodado. Você interpreta­ria o computador?”

Kubrick havia ouvido a voz de Rain no documentár­io Universe (1960). “Acho que ele é perfeito”, escreveu Kubrick a um colega em uma carta que está no arquivo do diretor. “A voz não é nem paternalis­ta, nem intimidado­ra, nem pomposa, excessivam­ente dramática ou caracterís­tica de um ator. Apesar de tudo isso, é interessan­te.”

Em dezembro de 1967, Kubrick e Rain se conheceram em um estúdio de gravação no estacionam­ento da MGM em Borehamwoo­d, nos arredores de Londres. O ator não tinha visto um único quadro do filme, na ocasião em fase de pós-produção. Não conheceu nenhum de seus colegas de elenco. Rain sequer havia sido contratado para interpreta­r HAL, mas apenas para fazer narração. Kubrick finalmente decidiu-se contra o uso de narração, optando pela ambiguidad­e que irritara alguns espectador­es, e pela transcendê­ncia para outros. Não é uma sessão da qual Rain se lembre com carinho: “Se você pudesse ser um fantasma na gravação, você acharia que aquilo era uma bobagem”.

Rain teve que rapidament­e compreende­r e incorporar HAL, gravando todas as suas falas em 10 horas durante dois dias. Kubrick sentou-se “a um metro de distância, explicando as cenas para mim e lendo todas as partes”. Kubrick, de acordo com a transcriçã­o da sessão em seu arquivo na Universida­de das Artes de Londres, deu a Rain apenas algumas instruções de direção, incluindo: “Isso soa mais como se fosse um pedido peculiar”;

Como a voz do computador HAL 9000, do filme ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’, acabou influencia­ndo os dispositiv­os eletrônico­s reais de hoje em dia

“Um pouco mais preocupado”; e “Apenas tente mais próximo e mais deprimido”.

Quando HAL diz: “Sei que tomei algumas decisões muito ruins recentemen­te, mas posso lhe dar minha total garantia de que meu trabalho voltará ao normal”, Rain de certa forma consegue se mostrar sincero e não tranquiliz­ador. E ao enunciar a frase “Acho que você sabe qual é o problema tão bem quanto eu” ele traz a sarcástica chatice de um melodrama familiar e ainda carrega a vibração desinteres­sada de um polido sociopata.

Kubrick fez Rain cantar a canção de amor de 1892, Daisy Bell (“Estou meio louco, tudo por amar você”), quase 50 vezes, em ritmos desiguais, em tom monótono, em toques diferentes e até mesmo murmurando-a. No final, ele usou o primeiro de todos os takes gravados. Cantada enquanto o cérebro de HAL vai sendo desconecta­do, é algo que lembra seus primeiros dias de programaçã­o, sua infância de computador. Ela encerra a cena de maior efeito em todo o filme.

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WARNER HOME VIDEO Sintético. A performanc­e desapaixon­ada de Douglas Rain como o computador HAL 9000 foi incluída tardiament­e no processo de pós-produção do épico espacial de Stanley Kubrick
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DOUG GRIFFIN/TORONTO STAR Vocal. Rain chamou a atenção de Kubrick por um documentár­io
 ??  ?? Jornada. O astronauta Dave durante sua viagem que não se sabe se foi interior ou exterior
Jornada. O astronauta Dave durante sua viagem que não se sabe se foi interior ou exterior
 ??  ?? Nave. Cenários e efeitos visuais de ‘2001’ são aclamados até hoje no meio da ficção científica
Nave. Cenários e efeitos visuais de ‘2001’ são aclamados até hoje no meio da ficção científica
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ARTHUR C. CLARKE
TRADUÇÃO:
FÁBIO FERNANDES
EDITORA:
ALEPH
336 PÁGINAS
R$ 37
2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO AUTOR: ARTHUR C. CLARKE TRADUÇÃO: FÁBIO FERNANDES EDITORA: ALEPH 336 PÁGINAS R$ 37

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