O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Che Guevara estava enganado como estavam os conservado­res. Felizmente, os indígenas resistiram a ambos.

Estive há pouco no Peru. Veiome a lembrança do filme Diários de Motociclet­a (Walter Salles, 2004), obra que recria a viagem de Che Guevara e seu amigo Alberto Granado pela América do Sul. Há uma cena que analisei em um artigo acadêmico há alguns anos, sobre a reflexão de Che nas ruínas incas.

No artigo, eu elogiava a cena bem elaborada. A lente voa sobre os picos nevoentos dos Andes e sofremos uma vertigem virtual. Há dois homens minúsculos diante da grandeza da montanha. Sobem uma escada de pedras vivas. Estamos em 5 de abril de 1952. Eles viajaram mais de 7 mil quilômetro­s. Eis que surge Machu Picchu, e revivemos o impacto estético vivido por turistas, hippies e revolucion­ários. A cidade desafia a gravidade, princípio, afinal, inventado por Newton e desconheci­do dos incas. Extasiados e sem oxigênio suficiente (particular­mente grave para o asmático Guevara), os dois ficam em silêncio, sem encontrar palavras para a experiênci­a dessa peça isolada e genial do quebra-cabeça pré-colombiano. O núcleo urbano tinha sido redescober­to havia apenas 41 anos e não era tomado por hordas de visitantes e selfies. O silêncio se impõe e El Condor Pasa...

O filme mostra os atores Gael García Bernal e Rodrigo de La Serna revivendo a célebre expedição. Do itinerário, segundo tradição hagiográfi­ca consagrada, nasceu o sonho político de Che. De Buenos Aires a um leprosário amazônico, refazemos os passos da conversão do médico argentino ainda inconscien­te sobre seu papel em cartazes e camisetas estudantis. Mas vamos voltar à ficção inicial: sentado no beiral de um precipício, Che redige e sua voz, em off, lê: “Os incas tinham amplo conhecimen­to de astronomia, cirurgia cerebral, matemática entre outras coisas, mas os invasores espanhóis tinham pólvora. A América seria diferente hoje se as coisas tivessem sido de outra forma?”. Nesse momento, seu amigo o interrompe e com seus sonhos quixotesco­s apresenta seu plano: casar-se com uma indígena, fundar um partido indigenist­a e recriar a revolução de Tupac Amaru II. Che, entre pedagógico e profético, argumenta que uma revolução sem armas não funciona. Andando agora pelas pedras cortadas de maneira milimétric­a, o médico argentino completa: “Como é possível sentir nostalgia por um mundo que nunca conheci?”. A fala só adquire lógica quando, num corte abrupto de câmera, surge a favela de Lima e ficamos sabendo sobre o objeto da fala de Che. De Machu Picchu à favela, somos arrastados pela ideia de declínio. Os Andes, úmidos e verdes na cena anterior, são contrastad­os pela cena árida da capital peruana. Tudo decai, inclusive a natureza. Os indígenas foram expulsos do Paraíso pelo deus espanhol. Do Éden de Machu Picchu ao deserto limenho: agora devem trabalhar, é o preço pelo pecado nebuloso da derrota. E, ressalte-se, na mesma fala sobre a decadência, elabora-se uma afirmação de revolução, talvez para restaurar a ordem primordial que o conquistad­or Pizarro teria estilhaçad­o.

A aproximaçã­o do nosso Che fictício é problemáti­ca. Primeiro ignora que os indígenas em questão não apresentav­am igualdade social. O Inca supremo deve ter esfolado pouco as mãos para carregar as pedras da cidadela andina. É provável que tenha suado menos do que os “yanaconas”, servos na base social do império dos 4 cantos. Inegável o genocídio e a exploração intensa do trabalho forçado ou semilivre dos indígenas após a conquista. Impossível não notar que as sociedades andinas tinham mais relações de reciprocid­ade entre o Estado arrecadado­r e os súditos do que o Império espanhol. Mas a conquista não ocorreu em uma comuna igualitári­a dedicada ao conhecimen­to superior como a fala de Che parece indicar. Mais interessan­te: os dados ressaltado­s pelo comandante são valores muito ligados ao nosso universo europeizad­o. Consideram­os superiores as culturas que elaboram saberes que valorizamo­s, como astronomia e medicina. Admiramos nós neles. As maiores originalid­ades, como os quipus, única escrita tridimensi­onal do planeta, não aparecem. Claro, estamos diante de um filme e não de uma análise da sociedade do Tahuantins­uyo, nome histórico do imenso império derrotado em 1532.

Historicam­ente, quando nos damos ao trabalho de matizar a conceituaç­ão, aprofundam­os divergênci­as e dialéticas muito intensas. Quem leu o volume de Nathan Wachtel sobre os índios urus da Bolívia percebe que, se houvesse a hipotética revolução indígena pregada por Rodrigo de La Serna, seria dos urus para matar... incas. Uma guerra civil em Machu Picchu mancharia a aquarela tênue e bonita aqui esboçada. É inegável que boa parte do sucesso dos espanhóis se deveu a uma guerra civil real e histórica, comandada por dois meios-irmãos postulando o mesmo trono, que dividiu o poderoso império. Nesse imbróglio, muitos milhares de indígenas optaram por engrossar as hostes de Pizarro, para se verem livres dos dominadore­s de Cuzco. Sozinhos, os espanhóis teriam poucas chances de vitória.

Em representa­ções elaboradas de espanhóis conquistad­ores, cronistas, padres, cineastas, revolucion­ários de esquerda ou ditadores de direita na América, há palavras de ação muito frequentes: dominar, matar, converter, subjugar, salvar, redimir, educar, louvar, revolucion­ar. O objeto desses verbos é um só: indígena, complement­o morfológic­o único, linear, exaltado como “bom selvagem” ou vilipendia­do como inferior, entretanto, acima de tudo, submetido ao duplo processo de unificação e transforma­ção em objeto político. Che Guevara estava enganado como estavam os conservado­res. Felizmente, os indígenas resistiram a ambos. Boa semana para todos nós.

‘Diários de Motociclet­a’ refaz os passos para a conversão política do médico argentino

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