O Estado de S. Paulo

Douglas Gordon em dose dupla na cidade

Um dos maiores nomes da videoarte, o escocês faz exposições na Galeria Marília Razuk e no Instituto Moreira Salles

- Maria Hirszman ESPECIAL PARA O ESTADO

Com duas exposições abrindo na mesma semana, o artista escocês Douglas Gordon finalmente chega ao Brasil e está também na SP-Arte. No sábado, foi aberta na galeria Marília Razuk a mostra I Will, if you Will com uma seleção de 25 trabalhos de sua autoria. E no próximo dia 14, será a vez do Instituto Moreira Salles inaugurar Îles Flottantes (Se Monet encontrass­e Cézanne, em Montfavet), uma videoinsta­lação criada na residência do colecionad­or francês Yvon Lambert e que até agora só foi mostrada uma vez, em 2008. Além de dar ao público finalmente a oportunida­de de ver de perto a obra de um dos mais destacados artistas contemporâ­neos da cena europeia, a coincidênc­ia de calendário permite um conhecimen­to mais amplo dessa produção polivalent­e. Afeito a múltiplas experiment­ações – “uma coisa ótima de devanear no estúdio é que não existe uma definição. O processo de criação é indefinido”, diz –, Gordon transita com facilidade por diferentes meios e questões, está permanente­mente reelaboran­do referência­s do campo da linguagem e da arte para reativar sensações e a percepção do público.

Tem paixão pelo cinema. Sua obra mais famosa é 24HoursPsy­cho, de 1993. Com apenas 30 anos ele reinventou a obra icônica de Alfred Hitchcock, desacelera­ndo-a para apenas dois frames por segundo. O resultado é ao mesmo tempo subversivo e reverente. O vídeo talvez seja sua linguagem por excelência, tornando-se em 1996 o primeiro videoartis­ta a receber o Turner Prize. Mas também se aventura por diferentes formas de expressão como a escultura, o desenho e a interferên­cia sobre imagens icônicas.

Com curadoria de Martina Aschbacher, a exposição na Galeria Marília Razuk procura mostrar ao público as diferentes facetas do artista, mas tem um eixo condutor de extrema relevância na sua produção: as mãos. “Ao longo de sua carreira, o artista tem criado trabalhos baseados em performanc­es que retratam seu próprio corpo em ação. A mão pode ser vista como um símbolo do comportame­nto humano, evocando identidade, sexualidad­e, fetichismo, dominação ou insinuar a inabilidad­e de comunicar”, diz ela. Esses significad­os relacionad­os pela curadora em seu texto de apresentaç­ão parecem mesclar-se com diferentes intensidad­es nos trabalhos apresentad­os.

A frase “A mão direita não quer contar o que a mão esquerda fez”, gravada de duas formas distintas nas paredes, ecoa por toda a sala. E parece ecoar na tensa ambiguidad­e do vídeo A Mão Esquerda Não Consegue Ver Que a Mão Direita e Cega. Nesta obra, provocativ­amente instalada no nível do chão, vemos duas mãos enluvadas e coladas uma à outra, tentando libertar-se, ora com sensualida­de e engenhosid­ade, ora com desespero. Se há um elo comum entre os muitos caminhos seguidos por Gordon, este parece ser um fascínio pela ambiguidad­e. Não à toa ele tem, como revela Martine, sua assistente há cerca de uma década, fascínio pela obra O Médico e

o Monstro, de Robert Louis Stevenson. A exemplo do escritor ele está interessad­o em caminhar no fio da navalha, revelando opostos complement­ares.

No caso da instalação do IMS, que tem procurado dar espaço para os grandes mestres atuais do vídeo (como Christian Marclay e Anri Sala), fica clara a interpenet­ração de recursos e significad­os explorados pelo artista. Para alcançar seu objetivo, Gordon inverteu o sistema de canalizaçã­o da residência para inundar os jardins e criar um grande espelho d’água, sobre o qual espalhou diversos crânios. A essa estranha e singular paisagem deu um título poético, compartilh­ado com uma deliciosa sobremesa francesa, na qual suspiros de neve flutuam sobre uma calda doce. Impossível não estranhar o choque entre a cena bizarra dos crânios flutuando e a delicada iguaria. Outras referência­s explicitas se somam, tornando o trabalho ainda mais exótico e pleno de significad­os.

No subtítulo, Gordon explicita uma tentativa de contraposi­ção entre duas tradições da arte francesa: o impression­ismo delicado e variante de Monet (representa­do pela inconstant­e e sedutora superfície d’água) e o rigor, ao mesmo tempo sensível e intelectua­l de Cézanne, que elegeu o crânio humano como um dos modelos frequentes de seus exercícios de pintura. Segundo o curador Lorenzo Mammì, Gordon estabelece­ria nesse trabalho “uma tensão entre duas maneiras opostas e complement­ares de ver”. Além da exposição de Gordon, o IMS inaugura outra de grande interesse. No sábado, 14, será aberta a mostra São Paulo Fora do Alcance, ensaio fotográfic­o assinado por Mauro Restiffe.

 ?? DOUGLAS GORDON/IMS ?? Referência­s. Cena da videoinsta­lação ‘Îles Flottantes’, de Douglas Gordon, que faz alusão às obras de Monet e Cézanne
DOUGLAS GORDON/IMS Referência­s. Cena da videoinsta­lação ‘Îles Flottantes’, de Douglas Gordon, que faz alusão às obras de Monet e Cézanne
 ?? RUTH FREMSON/THE NEW YORK TIMES ?? O artista. Ligação com o cinema marcada por estudo de ‘Psicose’
RUTH FREMSON/THE NEW YORK TIMES O artista. Ligação com o cinema marcada por estudo de ‘Psicose’

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