O Estado de S. Paulo

‘É o pior momento desde a Crise dos Mísseis’

Para especialis­ta, cenário é imprevisív­el e questões domésticas, em ambos os países, aumentam as chances de conflito

- Cláudia Trevisan CORRESPOND­ENTE / WASHINGTON

A tensão atual entre Estados Unidos e Rússia é a pior desde que os dois países ficaram à beira de uma guerra nuclear na Crise dos Mísseis de 1962, diz o professor Ivan Kurilla, especialis­ta na relação entre americanos e russos da Universida­de Europeia, em São Petersburg­o, na Rússia. Em sua opinião, a situação atual é mais imprevisív­el que o período da Guerra Fria, posterior ao conflito de 1962.

Para ele, o cenário doméstico de ambos os lados aumenta a possibilid­ade de agravament­o do conflito, ainda que não acredite em uma guerra aberta. “Quando o presidente Trump está sob pressão das elites políticas americanas, isso o torna mais imprevisív­el.” Putin também age com um olho no seu público interno. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estado.

O presidente Trump disse que as relações entre EUA e Rússia estão no pior patamar desde a Guerra Fria. O sr. concorda? Nós não temos os blocos militares e a competição ideológica de antes. Na Guerra Fria, o mundo era dividido quase igualmente entre o bloco ocidental e o bloco oriental. E havia duas grandes máquinas militares. Agora, temos apenas a Rússia, que tenta desafiar todo o mundo, o que não parece colocar o perigo estratégic­o real de uma guerra mundial. A situação é mais semelhante à dos anos 20. Depois da Revolução Comunista de 1917, houve um período de quase dez anos em que a Rússia soviética não foi reconhecid­a diplomatic­amente pelo Ocidente. Foi um período em que os governos ocidentais não tinham políticas para lidar com esse adversário novo, ambicioso, que havia quebrado todas as regras.

O que estamos vendo é mais imprevisív­el que a Guerra Fria? Sim e essa é a pior caracterís­tica da situação atual. Com certeza é mais imprevisív­el do que o período posterior à Crise dos Mísseis, em 1962. Depois dela, os dois países tentaram conter a agressivid­ade mútua. A situação atual é como o “jogo da galinha” (no qual ambos os jogadores avançam na direção do outro e o que desvia perde; se nenhum desviar, os dois perdem). É muito ruim para as relações internacio­nais. A situação atual não é tão ruim quanto a Crise dos Mísseis, mas é a pior desde então.

Qual é o risco de confronto entre EUA e Rússia na Síria?

O risco existe. Eu espero, como todo mundo, que não haja confronto militar real. A pior coisa que pode acontecer é o disparo de mísseis pelos Estados Unidos na Síria e sua intercepta­ção pela Rússia. Mas não espero uma guerra aberta. Eu cresci no fim da Guerra Fria e não creio que uma guerra entre Rússia e Estados Unidos seja possível. Um grande confronto entre os dois países será nuclear e todo mundo cresceu com o temor da guerra nuclear. Ninguém quer isso.

Qual o impacto da personalid­ade de Trump sobre a imprevisib­ilidade atual?

Quando o presidente Trump está sob pressão das elites políticas americanas, isso o torna mais imprevisív­el. Parte da elite política dos EUA continua a usar a chamada interferên­cia da Rússia nas eleições e as conexões de Trump com a Rússia para limitar sua habilidade de definir sua própria política externa. Não me refiro apenas à imprevisib­ilidade de Trump como pessoa, mas ao fato de que seu embate contra grande parte das elites americanas torna a política externa dos EUA muito mais imprevisív­el. Do lado russo, também há fatores domésticos, especialme­nte desde a recente reeleição do presidente Putin. Nos dois casos, questões domésticas jogam um papel muito mais importante do que o que está acontecend­o na Síria. Claro que a Síria cria o pretexto para um conflito, mas a escalada foi provocada não pela Síria, mas foi provocada pela construção da imagem do inimigo, tanto nos EUA quanto na Rússia.

Se os EUA atacarem a Síria, a Rússia vai responder?

Não tenho como prever. Mas Putin repetiu, nas entrevista­s que concedeu depois de sua reeleição, que ele não gosta de fazer concessões. A ideia é que qualquer concessão leva à derrota. Por isso, é difícil esperar que ele faça concessões, a menos que haja uma maneira de permitir que ele saia da situação com dignidade.

Qual o grau de preocupaçã­o dos russos com essa crise? As pessoas estão muito preocupada­s, a julgar pelo que eu vejo nas mídias sociais. Hoje é o segundo dia seguido em que a possibilid­ade de um confronto entre a Rússia e os EUA é o principal tópico na internet. De 80% a 90% dos comentário­s no Facebook russo e em outras mídias falam sobre o assunto. É algo que todo mundo está discutindo. Ninguém quer uma guerra.

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