O Estado de S. Paulo

Audiências no Congresso foram teatro de cúmplices

- Dennys Antonialli DENNYS ANTONIALLI É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E DIRETOR DO INTERNETLA­B, CENTRO DE PESQUISA EM DIREITO E TECNOLOGIA

Mark Zuckerberg teve que trocar o agasalho pela gravata para enfrentar, nos últimos dois dias, uma verdadeira sabatina do Congresso dos Estados Unidos a respeito do escândalo envolvendo o Facebook e a Cambridge Analytica.

Pálido e visivelmen­te cansado, Zuckerberg respondeu perguntas duras sobre praticamen­te todos os temas possíveis: do modelo de negócios às políticas de inclusão e diversidad­e racial da empresa. Um a um, os membros do Congresso parecem ter sabido aproveitar seus 4 ou 5 minutos para mostrar a seus eleitores – e ao resto do mundo – que não estão felizes com a atuação da plataforma.

As interrupçõ­es frequentes e o tom quase irônico dos congressis­tas deixavam claro que estávamos assistindo ao mais bem produzido “puxão de orelha” da história da internet. A imagem do jovem empresário acuado, sendo constrangi­do perante os “representa­ntes do povo”, é poderosa: algo está sendo feito.

O prazer quase sádico que se sente com a reprimenda é justificáv­el: em sua saga para tornar o mundo mais “aberto e conectado”, o Facebook já errou muito. Com os erros, costumam vir as desculpas e, com elas, algumas mudanças. O que não muda é o modelo de negócios da empresa que, graças à coleta massiva de dados de usuários, pode oferecer sofisticad­as ferramenta­s de direcionam­ento de anúncios, serviço esse que é responsáve­l por grande parte de sua invejável receita de US$ 40,6 bilhões, só em 2017.

O que parece não ter ficado claro é que Zuckerberg não construiu tudo isso sozinho. O Facebook só existe – e continuará existindo – da forma como ele é porque o Congresso dos EUA nunca implemento­u um modelo regulatóri­o que protegesse satisfator­iamente a privacidad­e dos usuários de internet. Sempre que surgiram propostas nesse sentido, elas foram sumariamen­te rechaçadas.

Tal como está desenhado hoje, o modelo dá às empresas do setor de internet grande liberdade para desenhar suas políticas de coleta e tratamento de dados, privilegia­ndo a inovação e o cresciment­o da chamada “economia digital” no país. O direito à privacidad­e é uma questão de escolha, sendo facilmente revogável a partir do (suposto) consentime­nto dos usuários.

Em um ambiente regulatóri­o tão permissivo, empresas do setor de internet encontrara­m as condições mais favoráveis para se desenvolve­r. Não é a toa que as gigantes do setor estejam sediadas lá. E também não é a toa que o Congresso tenha resistido tanto – e por tanto tempo – a interferir nesses modelos de negócios. E isso expôs não só os cidadãos dos Estados Unidos, mas os do mundo inteiro. Se há alguma coisa a esperar desse teatro é que os congressis­tas percebam que o sucesso e o fracasso de Zuckerberg se devem também a eles.

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