O Estado de S. Paulo

Um caso de paixão e de amor pelos livros em clima de sonho

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Severina, de Felipe Hirsch, é o que se pode chamar de adaptação fiel de um livro. No caso, o romance homônimo do guatemalte­co Rodrigo Rey Rosas, ainda não publicado no Brasil. Fiel, não submissa; isto é, não literal, mas ligada à essência da obra literária e do que ela faz ressoar no público.

Filme – e livro – falam, entre outras coisas, do amor à literatura. Esse amor, digamos, um

tanto extemporân­eo numa sociedade com brutal predomínio das imagens sobre as palavras. Numa época de velocidade, imagens e superficia­lidade, a leitura parece, vamos dizer assim, um exercício a contrapelo dos costumes vigentes. Exige calma, silêncio, reflexão, tempo. Tudo o que não temos. Tudo o que não se cultua mais. Ambientes calmos e silencioso­s são às vezes chamados de “deprimente­s” por pessoas muito aflitas e apressadas – quer dizer, 99% da humanidade.

Pois bem, a história situa-se num desses ambientes “antigos”, o interior de uma livraria, também ela situada na parte histórica de uma velha cidade. Embora a exata localizaçã­o geográfica não seja dita, adivinha-se naqueles prédios velhos, dignos e estáveis a sobriedade de Montevidéu.

O dono da livraria (Javier Drolas) é um rapaz que alterna o prazer da leitura com a aspiração de tornar-se, ele próprio, escritor. Tem muito tempo livre (livrarias, a não ser as horrorosas megastores

contemporâ­neas, não são supermerca­dos). Utiliza esse tempo em saraus que promove com escritores numa saleta dos fundos da loja.

Ana (Carla Quevedo) é a garota que aparece de vez em quando na livraria para, invariavel­mente, furtar um livro, ou vários. Intrigado a princípio, o livreiro, identifica­do apenas como R., deixa-se seduzir pela moça. À trama livresca, soma-se outra, amorosa. E, às duas, uma terceira, talvez a principal, investigat­iva, pois Ana é o mistério em pessoa. R. a segue pelas ruas, quer saber quem é, onde mora, de onde veio (tem um sotaque estranho). Boa parte da história, e do seu encanto, é consumido nessa busca de desvendar o segredo.

Hirsch faz um filme totalmente hispânico. O romance é guatemalte­co, a locação uruguaia, o elenco (Drolas e Quevedo) argentino – no qual se soma o ótimo ator chileno Alfredo Castro. A fotografia é do português Rui Poças (que tem trabalhos ótimos em Zama, As Boas Maneiras eO Ornitólogo, entre outros).

O desenho visual é particular­mente importante neste caso. Hirsch pede – e obtém – uma luz fria, misteriosa, para situar a história numa espécie de dimensão atemporal, sem localizaçã­o geográfica muito precisa. É um ambiente ficcional, no sentido forte do termo. Os personagen­s movem-se como em um sonho, em especial o narrador, R., levado por seus desejos e impulsos. Um pouco é essa mesmo a caracterís­tica do mundo literário, dominado pela imaginação, pelo monólogo interior, às vezes por uma hipertrofi­a da ruminação mental.

Mas também assim é o mundo da paixão, em que o enamorado é movido pelo desejo incontrolá­vel de tudo saber sobre o objeto do seu amor. Pelo consentime­nto em deixarse manipular, tendo como única recompensa a companhia do ser amado. Essa ambientaçã­o torna encantador­a a insólita história de Severina. E, sim, Rodrigo Rey Rosa é um escritor e tanto. A ser lido.

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