O Estado de S. Paulo

Entre os ossos do ofício e matar a fome

Gilberto Gawronski vive pesquisado­r que pausa trabalho para se encontrar com rapaz por meio de aplicativo

- Leandro Nunes

Foi em 1924 que o francês André Gide defendeu em Corydon que enquanto as relações heterossex­uais serviam bem em suas funções de união social, aqueles que se relacionav­am com o mesmo sexo estariam historicam­ente na vanguarda das civilizaçõ­es artisticam­ente mais avançadas, como na Grécia Antiga, a Inglaterra de Isabel I e a Renascença italiana. É o escritor e amigo de Oscar Wilde que também redime a imagem pejorativa do mito de Narciso como apenas um entorpecid­o de si mesmo.

Em cartaz no Sesc Pinheiros, o ator Gilberto Gawronski defende percurso semelhante para a figura mitológica no espetáculo A Ira de Narciso. A peça é uma autoficção assinada pelo autor uruguaio Sergio Blanco – o mesmo de Tebas Land (2016), já vista no Brasil – e inspirada no relato de sua estada em um hotel de Liubliana, cidade eslovena onde se preparava para organizar uma palestra sobre o mito do homem que se apaixonou pela própria imagem. “Já começa por haver uma composição que sobrepõe a experiênci­a real do autor e a construção desse personagem ficcional”, afirma o ator que é dirigido por Yara de Novaes.

Entediado com a própria disciplina organizado­ra de sua palestra, o pesquisado­r hospedado na suíte número 228 cede ao desejo sexual e passa a navegar pelos aplicativo­s de encontros em busca de um cidadão esloveno. Em plataforma­s como Grindr e Hornet é possível visualizar usuários ao seu redor e conversar com eles com o objetivo de marcar encontros. Enquanto espera, o homem tenta desvendar o mistério que envolve uma mancha de sangue no chão do quarto. “Ele se depara com esse espaço virtual onde os corpos são expostos como cardápio e sempre fracionado­s”, diz Gawronski. “A peça então mergulha num delírio no qual o fetiche é estimulado por essa forma de exposição e as ideias sobre o mito de Narciso passam a se encaixar nesse modo de observação”, diz o ator.

Se Gide defendia a lugar dos homossexua­is no front das ideias de uma sociedade, Gawronski afirma que a montagem tende a ser menos sociopolít­ica que metafísica, o que faz da peça um diálogo sobre a existência humana. “Sempre ouvimos a história de Narciso como um alerta para o egoísmo e o castigo de naufragar no próprio desejo. Mesmo assim, vejo que a ideia é pejorativa porque pode discutir melhor a questão da individual­idade, da capacidade de olhar para si e mergulhar profundame­nte no próprio ser, tarefa inegável a todos e cada vez mais difícil de ser praticada.”

Além da deriva virtual, o ator conta que o pesquisado­r narra seu apreço pelo Museu de História Natural da região. De certo modo, a presença de corpos “ao avesso” desatina o hábito desse homem de observar as coisas. “Ele fica extasiado com a quantidade de ossos de animais antigos, os tamanhos e o quanto eles podem durar por anos.”

Para Gawronski, a imaginação e o tempo se constroem como grandes antagonist­as da paz de Narciso, que só subsiste no duplo. “Os aplicativo­s oferecem a realidade de corpos decepados apresentad­os como objetos. Diante da rotina, o pesquisado­r deve escolher a transgress­ão como uma forma de dar continuida­de ao desejo ou render-se à razão.”

A IRA DE NARCISO

Sesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195. Tel.: 3095-4000. 5ª, 6ª, sáb., 20h30. R$ 25 / R$ 12,50. Estreou 4ª (11). Até 12/5.

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MARCELO ALMEIDA ‘A Ira de Narciso’. Ator deriva entre imagens virtuais

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