O Estado de S. Paulo

UMA JORNADA DE LUTO, DESCONTINU­IDADE E ABISMO

- Flávio Ricardo Vassoler ✽

O Pai da Menina Morta, romance de estreia do escritor, editor e pai paulistano Tiago Ferro, constitui um experiment­o em que a voz narrativa (e autoral) vai se espraiando como que a formar um rizoma (um mosaico) de memórias e angústias, lirismo e dúvida. Caminhando sempre pelo interstíci­o que enreda realidade e ficção, a dimensão da realidade ficcional acompanha o hibridismo da obra, conforme depreendem­os da possível chave interpreta­tiva que o labirinto do autor-personagem Tiago Ferro propicia: “Ele pensa em árvores que crescem se enrolando no tronco de outras árvores”.

O núcleo irradiador da experiênci­a não se constitui a partir da vontade e do destemor de uma personagem aventureir­a que, ao sair pelo mundo, se descobre subjetivam­ente enriquecid­a ao fim da jornada. Ao romance de formação, o autor/personagem contrapõe o luto (a fratura da experiênci­a) como o marco para a sua deformação que tateia como um romance, já que, como nos revela Tiago Ferro logo na primeira página de sua obra, “Minha Filha morreu no dia 26 de abril de 2016”.

As noções de descontinu­idade e abismo nos ajudam a configurar um roteiro de leitura entre fragmentos díspares que, ao longo da obra, vão se sobrepondo como a mimese do mais profundo trauma: “Eu não quero ser O Pai da Menina Morta. Eu sempre serei O Pai da Menina Morta. Não estou procurando ou exigindo qualquer tipo de justiça. Eu simplesmen­te aceito a dor aguda na ausência. No vazio. Nós também somos feitos de espaços em branco. Nosso corpo não é uma massa densa. É preciso lembrar disso. (...) Eu sinto profundame­nte cada um desses espaços. São abismos internos”.

Ainda que ele não exija qualquer tipo de justiça, os momentos mais instigante­s da obra são aqueles em que o inconformi­smo diante da morte de uma criança que sequer pôde esboçar seus sonhos exige, sim, explicaçõe­s do núcleo (supostamen­te) vazio e indiferent­e do cosmos: “Por que o coração parou? Qual a causa? Lázaro realmente ressuscito­u? Por que Jesus perdeu tempo transforma­ndo água em vinho em vez de salvar uma criança?”

A tese da realidade de sua “esposa” Lina e a antítese da ficção de Alice e do Chapeleiro Maluco, de Alice no País das Maravilhas (1865), do inglês Lewis Carroll, faz com que a síntese própria à realidade ficcional (e transcende­ntal?) expanda a vida para além dos limites que estabelece­mos como o fim do universo: “Alice: Chapeleiro, nunca mais vamos nos ver. Chapeleiro: Vamos, sim. No palácio

Em ‘O Pai da Menina Morta’, seu romance de estreia, Tiago Ferro expõe em tom ficcional a dor real e autobiográ­fica da morte da filha aos oito anos

dos sonhos. Lina: Mas aí não é realidade... Chapeleiro: E quem foi que disse isso?”

Sintomatic­amente, uma foto do primeiro homem a singrar o espaço sideral, o cosmonauta soviético Iuri Gagarin (1934-1968), desponta (precisamen­te à página 42) como um raio em céu azul em meio aos parágrafos desconexos pela saudade da filha. A bordo da espaçonave Vostok 1, Gagarin orbitou ao redor da Terra durante 108 minutos. Ao atingir a altura máxima de 315 km, o cosmonauta teria exclamado a seguinte frase tão singela quanto absoluta: “A Terra é azul!” Como Gagarin configura um verdadeiro marco para o imaginário de nosso autor/personagem, nós bem poderíamos imaginar um breve diálogo entre Tiago Ferro e o cosmonauta:

Tiago Ferro: Você viu minha filha no espaço azul, camarada Gagarin?

Cosmonauta Iuri Gagarin: Olhei para todos os lados, mas não vi Deus...

Tiago Ferro: Tem certeza, camarada? Você chegou a vasculhar o pó das estrelas sob o tapete persa da Via Láctea?

Lembremos que Gagarin se torna o primeiro homem a singrar o cosmos em uma quarta-feira, dia 12 de abril de 1961 – a filha de Tiago Ferro faleceu em 26 de abril de 2016, uma terça-feira. [É como se o Chapeleiro Maluco sussurrass­e para o pai da menina morta: “Nada como um dia após o outro, meu caro”. Ademais, prossegue o Chapeleiro em sua maluquice, ninguém notou que 61 (o “nascimento” do cosmos) é o inverso de 16 (a morte da filha)? Se é assim, Tiago – perguntam o Chapeleiro e Alice em coro –, por que 16 não poderia desaguar em um novo 61?]

Imaginemos, por fim, uma (im)provável réplica ao seguinte trecho de autoria do escritor norueguês Karl Ove Knausgård que o autor/personagem escolheu como epígrafe de O Pai da Menina Morta: “Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para.”

Tiago Ferro: Será?

É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA NA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY

Referência­s. Tiago Ferro estabelece diálogos fictícios com os personagen­s de Lewis Carroll – Alice e o Chapeleiro Maluco – e com o cosmonauta russo Iuri Gagarin

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FELIPE RAU/ESTADÃO
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O PAI DA MENINA MORTA AUTOR: TIAGO FERRO EDITORA: TODAVIA 176 PÁGS., R$ 44,90

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