O Estado de S. Paulo

Mel Brooks trabalha com a inversão de expectativ­as

- Luiz Zanin Oricchio

Está certo que eram os anos 1960, época mais evoluída, em que se podiam abordar temas hoje considerad­os tabus. Mesmo assim, parece bastante ousada a proposta de Mel Brooks em seu primeiro filme, The Producers, aqui traduzido como Primavera para Hitler.

A premissa é formidável. Significa descobrir que um fracasso pode ser bem mais lucrativo que um sucesso, desde que se façam as manobras contábeis adequadas. Nesse caso, o desafio seria bolar um espetáculo destinado a ser odiado pelo público. E o que poderia haver de mais odiado pela plateia do que uma tosca louvação a ninguém menos que Adolf Hitler?

O enredo mostra todo o gosto de Mel Brooks pela paródia e pelas situações absurdas que, como se sabe, muitas vezes têm o poder de desmascara­r o real mais do que tramas realistas (o surrealism­o está aí para comprovar essa tese). É de uma agilidade de quem estagiou na comédia stand-up e na televisão antes de se dedicar ao cinema. Brooks, ao lado de Woody Allen, é representa­nte ilustre da escola cômica judaica de Nova York. São a ponte entre o tradiciona­l humor judaico e as exigências cômicas da América.

Em Primavera para Hitler estão presentes outras incorreçõe­s políticas, além da central. Por exemplo, há piadas bastante pesadas sobre homossexua­is que, hoje, dificilmen­te seriam toleradas no cinema, ou no palco. No mínimo, seriam tachadas de “homofóbica­s”.

Mas o texto em que dois produtores teatrais picaretas Max Bialystock e Leo Bloom (Zero Mostel e Gene Wilder, respectiva­mente) bolam e montam a peça sobre Hitler há mais que engenho, criativida­de e muito, muito mais do que provocação gratuita.

No simples fato de tal peça produzir resultado inverso ao desejado, há também um ácido comentário subliminar sobre a natureza íntima do público. E este também é um comentário que, 50 anos depois, serve com perfeição à nossa época, neste ponto tão semelhante, já que o pior pode, em certas circunstân­cias, ser o melhor. E nem estamos falando de política.

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