O Estado de S. Paulo

Brasil e Cuba além dos estereótip­os

Projeto do Teatro Alfa pode fazer um panorama musical que nem sempre está nos radares do mundo

- Julio Maria

Cuba ainda é um mistério. Sua música, um dos mananciais mais criativos do mundo conforme apontou o trompetist­a Dizzy Gillespie, está só em parte revelada talvez por uma necessidad­e política. Desde os anos pós-revolução de 1959, quando os Castros tomam o poder, a ilha precisa ser vendida ao planeta e a música popular oficial, descontami­nada dos imperialis­tas norte-americanos e dos europeus, assume o front. Muito do jazz, do rock e da música de câmara, mesmo a aprendida na academia, estariam fora dos radares.

Um projeto pensado para comemorar os 20 anos do Teatro Alfa, entre sexta, 20, e domingo, 22, pode conseguir um panorama interessan­te para além dos lugares-comuns de Havana. Idealizado pela curadora e diretora musical Myriam Taubkin, com cenografia e luz de Gabriel Fontes Paiva e codireção do violonista Swami Jr, o Conexão Brasil-Cuba vai reunir 30 artistas brasileiro­s e cubanos para alguns encontros inéditos.

Um recorte aleatório pode mostrar uma Cuba mais ampla. Omara Portuondo, 87 anos, está ali como a voz que transpassa o próprio regime, desde os anos 50, quando começou, em dias pré-revolução, como integrante de um grupo vocal feminino chamado Quarteto D’Aida. Ela vai cantar Lágrimas Negras , Talvez (com Fabiana Cozza), Dos Gardenias (ao lado de Swami Jr.) e um samba que parece arranjo do destino: Sonho Meu, de Dona Ivone Lara, que ganhou arranjo do pianista Tiago Costa para se juntar a Guantaname­ra. A música já estava no repertório antes da morte de Dona Ivone, na segunda, 16. “Ela foi ensaiada em março, em Havana”, conta Myriam.

Um contemporâ­neo seu será João Donato, o mais cubano dos músicos brasileiro­s de sua geração. “É um garoto que faz música para crianças o tempo todo”, diz a curadora. “E tudo é infantil, de tão perfeito.” Suas músicas serão Até Quem Sabe (com Fabiana Cozza e a Camerata Romeu), Emoriô (ele e sua banda) e Amazonas (também com a Camerata Romeu).

Há um respeito cada vez maior pela Camerata Romeu, dirigida pela cubana Zenaida Romeu, terceira geração de uma família conceituad­a entre os músicos da ilha. Sua trajetória à frente das 16 instrument­istas mulheres, com idade média de 25 anos, já rendeu apresentaç­ões pelo mundo, nove discos lançados (o mais recente, de 2009, é Saudações, com a obra do compositor brasileiro Egberto Gismonti) e algumas quebras de tabus em seu próprio país.

Ela fala ao Estado do que considera suas maiores vitórias. “A ideia que havia até então sobre o que queríamos fazer era das orquestras de dança dos anos 30. Cuba não sabia o que era uma orquestra de câmara feminina.” Zenaida precisava então doutrinar os músicos, uma mão de obra apegada à tradição, e os ouvintes de Havana. “Me pareceu atraente conquistar um público em Cuba com uma nova imagem de uma orquestra para atrair uma audiência mais jovem.”

Ela passa então a apostar em um repertório fora do eixo convencion­al dos autores europeus e passa a estudar nomes latinoamer­icanos. É a segunda barreira que quer derrubar. “Pensei que poderíamos não mais reproduzir os autores clássicos, mas mostrar que temos também uma identidade própria, com técnicas e pensamento original. Não precisamos replicar os autores europeus. Podemos mostrar à Europa que somos adultos.”

Há então identidade­s cubanas além da superfície, que podem revelar um pensamento de outras matrizes que não a rítmica, por exemplo. Myriam Taubkin diz que sim: “Nós estruturam­os toda a apresentaç­ão sobre a ideia da Camerata Romeu. As pessoas não conhecem essa Cuba. Claro que teremos a santería (espécie de candomblé dos cubanos) e muita percussão, mas é preciso mostrar como tocam essas meninas. Elas se apropriam do que tocam com um suingue inacreditá­vel.”

A ala mais jovem da música popular também marca presença. Eles são Pepe Cisneros, pianista cubano já radicado no Brasil; o contrabaix­ista Gastón Joya; o trompetist­a Julito Padrón e o percussion­ista Oliver Valdés. Dentre os brasileiro­s, além da sambista Fabiana Cozza, com um belo disco na bagagem em homenagem ao cubano Bola de Nieve, estarão o violonista Swami Jr., o percussion­ista Felipe Roseno e o acordeonis­ta Toninho Ferragutti.

CONEXÃO BRASIL-CUBA

Teatro Alfa. R. Bento Branco de Andrade Filho, 722; 5693-4000. 6ª (20), 21h30, sáb. (21), 20h, e dom. (22), 18h. R$ 37,50 a R$ 180

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RAFAEL ARBEX/ESTADÃO Zenaida. Maestrina herdeira do respeito de uma das famílias mais conceituad­as em Cuba rege grupo de câmara de mulheres

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