O Estado de S. Paulo

Kore-eda e as coisas que raramente são o que parecem

No filme de tribunal ‘O Terceiro Assassinat­o’ não é a verdade que está em discussão, mas a estratégia legal

- Luiz Carlos Merten

Diretor, roteirista e, com frequência, também o montador dos próprios filmes, Hirokazu Kore-eda tornou-se o mais conhecido cineasta de sua geração no Ocidente. Desde Maborosi – A Luz da Ilusão, de 1995, seus filmes integram regularmen­te a seleção do Festival de Cannes. Já foi premiado por Depois da Vida , Ninguém Pode Saber , Seguindo em Frente, Pais e Filhos, todos grandes filmes. Mês que vem, estará de novo em Cannes com Shoplifter­s/Ladrões de Lojas, que integra a seleção do 71.º Festival. No ano passado, como O Terceiro Assassinat­o não ficou pronto a tempo, Kore-eda substituiu Cannes por Veneza. Agora estreia no Brasil.

Um filme de tribunal, mas não exatamente no formato a que o público está acostumado a ver nas séries americanas. O protagonis­ta é um advogado de sucesso, interpreta­do por Fukuyama Masaharu, que fazia o pai rico de Pais e Filhos. De cara, ele aceita um novo caso, mas não é porque esteja convencido da inocência do homem que deve defender. Esse homem esteve preso por muitos anos, condenado pelo pai de Masaharu. Solto, confessou novo assassinat­o, mas sumiu com o cadáver.

É um réu confesso, mas a toda hora ele muda a versão do crime, o que leva alguém, no tribunal, a observar que o julgamento está virando uma farsa. Sem sustentaçã­o para a defesa do seu cliente, o advogado vale-se de todo tipo de artimanha legal para evitar a condenação à morte. Não é a verdade que está em discussão, mas a estratégia legal. Masaharu chega a dizer que ela é a verdade possível no caso.

O Terceiro Assassinat­o é mais um ótimo Kore-eda, mas no Brasil da Lava Jato o filme pode ser visto de uma forma muito intrigante. Das certezas do começo às improbabil­idades do desfecho, Kore-eda fez um filme provocativ­o que questiona procedimen­tos legais e relativiza o conceito de julgar outro ser humano. Em bom português, não se mostra nem um pouco convencido de que a Justiça possa estar sempre certa. E, sim, não seria um filme de Kore-eda se, no limite, não abordasse questões de família.

Como filho de juiz, Masaharu chega a cobrar, do próprio pai, em seu imaginário, por que o criminoso não recebeu uma condenação mais dura no passado, o que teria eliminado toda essa confusão do presente. Masaharu tem uma filha, que se sente negligenci­ada, e esse tema, o comprometi­mento dos pais, já estava em Pais e Filhos. Mestre da luz, Kore-eda recorre à iluminação para criar áreas de sombras no rosto dos personagen­s, de forma a fazer da penumbra outra evidência de que as coisas raramente são o que parecem. A beleza transparec­e nas cenas da cadeia, quando o prisioneir­o é separado do advogado e sua equipe por uma parede de vidro na qual os rostos não apenas se refletem, mas superpõem. Kore-eda filma bem demais, mas, isso, todos sabemos, não é de agora.

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IMOVISION Em questão. Mecanismo legal e o conceito de julgar outro ser humano

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