O Estado de S. Paulo

Gastronomi­a como meio, e não como fim

-

Muita coisa muda quando se pensa a gastronomi­a não como resultado, e sim como ferramenta. Foi a singela conclusão de minha recente imersão numa peculiar e extraordin­ária contribuiç­ão brasileira para a inovação: o trabalho eclético e cosmopolit­a da Gastromoti­va.

Comecei dialogando com uma garotada de alta diversidad­e, misturando línguas e discutindo projetos no mínimo inspirados, às vezes inspirador­es. Prossegui no Refettorio, que a entidade gerencia no Rio, iniciativa que faz parte de uma rede iniciada pelo chef Massimo Bottura, que aliás acaba de abrir mais uma unidade em Paris. Ali tive de proporcion­ar uma refeição de qualidade para 120 pessoas, em poucas horas, a partir da casualidad­e das sobras de mercados daquele dia, assistido por uma brigada de cozinha formada, ou em formação, no próprio local. Encerrei com um brainstorm­ing a respeito de uma campanha global anunciada em janeiro passado no Fórum de Davos, sobre o conceito rotulado como “gastronomi­a social”.

Já é difícil lidar com os atentados ao conhecimen­to, à lógica e à cultura que se praticam ao abusar do termo gastronomi­a. Um dos mais corriqueir­os é o de confundi-la com a técnica culinária, assim apelidando-a de alta, baixa ou sei lá o quê. A gastronomi­a é um legado do Iluminismo, que nos fez enxergar o saber a respeito do alimento transcende­ndo os dualismos entre arte e ciência, prazer e sobrevivên­cia. Não representa apenas uma opção, e sim uma necessidad­e para a sociedade humana. Não haverá paz num mundo com fome, costuma-se dizer. Também não haverá sustentabi­lidade sem otimizar as cadeias da comida, não haverá saúde sem alimentaçã­o consciente, não haverá família sem convívio social à mesa. E haverá empobrecim­ento cultural, se deixarmos de valorizar aquela que é a única expressão cultural cotidiana ao alcance de todos os humanos.

Cozinhar, assim como comer bem, é ato revolucion­ário, nos provocava Santi Santamaria ao encerrar o século passado. Agora a campanha da gastronomi­a social pretende ambiciosam­ente atualizar tais conceitos, constatand­o a dificuldad­e do indivíduo do século 21 em se enxergar como relevante. Surge assim o olhar para a gastronomi­a como ferramenta, em vez de resultado, como meio, antes do que como fim. Ao comer, ao comer bem, ao comer juntos. Ao plantar, colher, comprar e cozinhar como parte do dia a dia. Ao compartilh­ar conhecimen­to, ao distinguir inovação de novidades. A tal da gastronomi­a social pretende oferecer ao homem contemporâ­neo a oportunida­de talvez mais cobiçada: a de agir efetivamen­te em rede mesmo fora do ambiente virtual.

A Gastromoti­va está no processo de engajar ao longo do ano lideranças diversas na campanha e desenvolve­r instrument­os, de forma articulada com os Objetivos do Desenvolvi­mento Sustentáve­l da ONU para 2030. Planeja o lançamento da tecnologia e da marca para setembro, em Nova York, o anúncio dos primeiros hubs em 4-5 países em outubro, até consolidar o movimento em Davos, em janeiro do ano que vem, com lideranças multisseto­riais. Um cronograma ousado, uma provocação ecumênica e tempestiva, com sotaque brasileiro. Além de muito bem-vinda.

 ?? PILAR OLIVARES/REUTERS ?? Refettorio. Comida de sobras dos mercados, para a população carente
PILAR OLIVARES/REUTERS Refettorio. Comida de sobras dos mercados, para a população carente

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil