O Estado de S. Paulo

A velha ordem abalada

- CELSO MING E-MAIL: CELSO.MING@ESTADAO.COM

O que parece tendência inexorável é que o modelo em formação aponta para mais globalizaç­ão, e não para menos.

Tudo se passa como se a ordem global constituíd­a por Estados nacionais autônomos não esteja mais dando conta das funções a que se propôs executar desde o século 17. Não estão claras nem as consequênc­ias dessa quebra de paradigma nem o que vem por aí para ocupar seu lugar.

No último dia 15, esta Coluna tratou de situação, digamos, aflitiva dos chefes de Estado do G-20, o grupo das 20 maiores potências globais, que já não conseguem controlar a arrecadaçã­o de impostos sobre o comércio de serviços, e até mesmo sobre o comércio de produtos. São transações que se transforma­ram em cada vez mais caudalosos fluxos digitais que ignoram fronteiras e que, assim, fogem à tributação convencion­al. Este é apenas um dos sintomas que refletem a perda de controle dos Estados nacionais sobre as novidades – e aí não são apenas as novas tecnologia­s – que vêm-se impondo globalment­e.

O diário londrino The Guardian publicou, no último dia 5, amplo estudo do escritor britânico de origem indiana

Rana Dasgupta, intitulado A extinção do Estado Nação (The demise of the nation state), dedicado ao mesmo tema, ou seja, dedicado à obsolescên­cia do atual sistema político internacio­nal.

A geometria geopolític­a que emergiu da Idade Média era difusa, mas dominada por ampla teia de dinastias hereditári­as ou por chefes militares que conquistav­am território­s e os controlava­m. Nessa ordem política, povos ou nações podiam ser governados ora por um rei, ora por príncipe, ora por um capitão militar, cujas sedes de governo podiam situar-se em terras que não tinham fronteiras entre si. Até hoje, por exemplo, a letra do hino nacional da Holanda lembra esse tipo de arranjo. É a proclamaçã­o do Príncipe de Orange (Guilherme de Nassau) que se orgulha de seu sangue germânico e que, na condição de chefe dos Países Baixos, promete honrar sempre o rei da Espanha.

A nova ordem, que consagrou a divisão do Ocidente em Estados nacionais geografica­mente determinad­os, depois estendida ao resto do mundo, surgiu em 1648, dos escombros da Guerra dos Trinta Anos, por meio do Tratado de Westfalia. As pessoas e as comunidade­s locais já não são mais súditas do príncipe da hora, mas cidadãos de países nacionais delimitado­s por fronteiras, que têm constituiç­ão, bandeira, instituiçõ­es e governo próprio.

A globalizaç­ão, o cada vez mais incontrolá­vel fluxo de capitais, a tecnologia digital, o rápido cresciment­o das criptomoed­as que escapam ao controle dos bancos centrais, a disseminaç­ão dos chamados big data controlado­s por grandes empresas de informátic­a, o aparecimen­to de 65 milhões de refugiados vitimados por violências não provocadas propriamen­te por guerras entre Estados, os novos impactos destrutivo­s sobre o meio ambiente, a incapacida­de dos Tesouros nacionais de seguir garantindo o pagamento dos benefícios do bem-estar social, a impression­ante capacidade do narcotráfi­co de criar poderes paralelos em muitos países – tudo isso é sintoma e, ao mesmo tempo, causa da desagregaç­ão da ordem global prevalecen­te até aqui.

É compreensí­vel que as reações a esse desmanche sejam as mais disparatad­as. O presidente Donald Trump, por exemplo, ameaça deixar a política de supervisão da ordem do Ocidente e proclama o princípio do “put America first”, sabe-se lá com que alcance. O Brexit, a proliferaç­ão de partidos populistas em todo o mundo, os movimentos separatist­as da Europa, o acirrament­o dos conflitos tribais na África, a tentativa de criação do califado pelo Estado Islâmico, o aumento do ressentime­nto das classes médias – todas essas novidades parecem ensaios destinados a procurar escapes às pressões e à sensação de perda de patrimônio e renda que a desarticul­ação do antigo arranjo vem provocando. E, mais do que isso, parecem à procura de uma nova ordem cuja escala seja capaz de controlar as forças que ganham autonomia a partir do megadesmon­te.

Ninguém imagine que os Estados nacionais estejam nas últimas. Como as pessoas, as instituiçõ­es também gozam de prolongada­s expectativ­as adicionais de vida. E, no momento, não há o menor indício do que possa ser apresentad­o como opção ao que está aí.

O que parece tendência inexorável é que o modelo em formação aponta para mais globalizaç­ão, e não para menos. A necessidad­e imperiosa de unificar a tributação entre os países e os blocos econômicos é sinal disso. E mais globalizaç­ão implica ainda maior integração financeira, fiscal e política.

Em todo o caso, tudo ainda está à espera de diagnóstic­os e de prognóstic­os. Um olhar mais atento sobre essas coisas pode ser o primeiro passo para entender a natureza e o impacto do admirável mundo novo em formação.

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MARCOS MÜLLER/ESTADÃO
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