O Estado de S. Paulo

A maioridade de um país Assim como no passado, o povo de Pindorama ainda anseia por um futuro brilhante no horizonte.

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Hoje lembramos os 518 anos da chegada de uma frota portuguesa à costa da atual Bahia. Outrora adoravam discutir se o episódio seria intenciona­l ou acidental. Há argumentos para os dois lados. Querendo ou não, achando ou descobrind­o (ou os termos mais quinhentis­tas, achamento ou invenção), o fato era que a prioridade lusitana estava no lucro das Índias que despejaria­m especiaria­s sobre Lisboa e fariam a beleza do mosteiro dos Jerônimos. Portugal e Argentina compartilh­am esse sentimento de apogeu já vivido. O Brasil na bancarrota ou em certa prosperida­de sempre foi, como disse Stefan Zweig, “o país do futuro”. Traço marcante dos brasileiro­s fictícios como Policarpo Quaresma (na obra de Lima Barreto) ou dos reais como o monarquist­a Afonso Celso (Porque me Ufano do

Meu País – 1900): somos um país de imensas possibilid­ades no horizonte por atingir. Aliás, na frota do almirante Cabral já viajava o homem fundador da tradição. Pero Vaz de Caminha olhou para a Terra de Santa Cruz com o olhar profético de que ali, naquela terra graciosa, tudo germinaria por força das águas. Da visão do escrivão até nossa esperança contemporâ­nea no aquífero Guarani ou no petróleo do pré-sal, somos o país das terras, recursos e esperanças infindas. Por que ainda não saímos do leito eterno e esplêndido?

Há um argumento sobre nossas origens que merece ser revisitado. Já afirmei, em mais de uma ocasião, que a corrupção é ambidestra e que, em nosso cotidiano, praticamos pequenos atos imorais, antiéticos e francament­e corruptos. Seja em Raymundo Faoro, a quem citei no mês passado, seja na controvers­a série O Mecanismo, a ideia de que existe uma elite corrupta que nos subtrai atavicamen­te desde o século 19 (ou desde os tempos coloniais) é frequente. No seriado, a busca da origem genética de um Estado patrimonia­lista e corrupto localiza Elias António Lopes, um traficante de escravos luso-brasileiro que doou sua casa na Quinta da Boa Vista para o regente. Em troca da “generosida­de”, virou cavaleiro da Ordem de Cristo, ganhou cargo em Paraty e em São João del-Rei (atual Tiradentes) e obteve a oportunida­de de cobrar impostos em várias localidade­s. Comerciant­es ou empreiteir­os; traficante­s de escravos de antigament­e ou os de drogas do século 21; empresário­s e latifundiá­rios sempre miraram o poder arrecadató­rio do Estado para obter vantagens.

É realmente inegável que havia conúbio incestuoso entre Estado e outros setores da sociedade em 1808 ou nos tempos de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. A questão que se põe é outra. O chamado Antigo Regime era baseado nisso. Era perfeitame­nte legítimo e esperado que houvesse favorecime­ntos, apadrinham­entos e um toma lá dá cá entre a monarquia e os amigos do rei. As capitanias hereditári­as foram a perfeita simbiose entre o interesse particular dos donatários e o poder da coroa. Um dono de uma concessão próspera como Pernambuco era, ao mesmo tempo, a empreiteir­a e o partido no poder. D. João no Rio de Janeiro estreitari­a esses laços fraternos em corrente de aço: o doador da Quinta da Boa Vista não realizou a transferên­cia da propriedad­e por lealdade aos Braganças ou a algum diáfano sentimento nacionalis­ta. Fez por interesse e anseio de retribuiçã­o.

No século 18, certo discurso republican­o de matriz iluminista passou a criticar essas práticas. Era necessário separar os poderes, ter transparên­cia, criar uma imprensa livre, treinar burocracia­s técnicas, probas e eficazes, eleger representa­ntes do povo (ainda que a ideia de povo, 250 anos atrás, fosse completame­nte diferente da de hoje). Houve revoluções e novas formas políticas surgiram tentando pôr em prática essas ideias novas. Ao fazê-lo, incorporar­am muito do patrimonia­lismo do Antigo Regime. Nosso país não foi exceção. Aliás, em um continente republican­o, optamos pela manutenção da fórmula monárquica por todo o século 19.

As observaçõe­s anteriores parecem conduzir a alguns sentimento­s paralisant­es. O primeiro é “sempre foi assim”, o imobilismo histórico. O segundo é “todo mundo faz assim”, o imobilismo sociológic­o. A crença em estruturas determinis­tas e anteriores é problemáti­ca. Seu oposto, a ideia de que tudo é derivado da vontade e ação humanas, é pouco científico. Os homens fazem a História, porém não do jeito que gostariam, lembrava um filósofo alemão. Um país nasce de opções concretas, diárias, individuai­s e coletivas. Mas tais opções são moldadas por uma forte tradição herdada do passado. Não é fácil, mas tudo pode ser mudado, até mesmo para pior. Não existe um destino ou um miasma natural brotando do solo. Dentro das possibilid­ades do presente, tudo é ação ou omissão dos agentes históricos: nós.

Assim como no passado, o povo de Pindorama ainda anseia por um futuro brilhante no horizonte. Permanece o desejo por um D. Sebastião a quem delegaremo­s a tarefa de refazer a mítica terra sem males. As águas continuam infindas e ainda há milhares de motivos para nosso ufanismo.

Parabéns ao país no qual moramos. Ele é jovem e forte, antigo e frágil, haja vista que sobrevive a seus governos ao mesmo tempo que naufraga em suas utopias. Sim, eu e você, querida leitora e estimado leitor, teremos de escolher alguém no ano em curso para recolocar o velho sonho de Caminha em outros trilhos. Teremos de nos virar com o que temos, com o que nos legaram e com o que deixaremos para o amanhã. Aos 518 anos, já somos grandinhos: não dá para debitar tudo na conta de ex-colônia portuguesa. Bom domingo para todos vocês.

Aos 518 anos, não dá mais para debitar tudo na conta de ex-colônia portuguesa

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