O Estado de S. Paulo

A ditadura na academia e o golpe de 2018

- •✽ CARLOS MAURÍCIO ARDISSONE ✽ DOUTOR E MESTRE EM RELAÇÕES INTERNACIO­NAIS PELA PUC-RJ

Ébastante duro, para não dizer impossível, ser ao mesmo tempo liberal e professor de Ciências Sociais no Brasil. Vida inglória a do professor que leciona num curso de humanidade­s e ousa proclamar-se publicamen­te “de direita”. O professor de Ciência Sociais que ousa questionar­a cartilha marxista gramsci anapr edominante e se recusa ase comportar como um intelectua­l orgânico em sala de aula enfrenta duras penas: é tachado de reacionári­o por muitos colegas, torna-se alvo de risadinhas e fofocas na sala de professore­s ef requentem enteép unido coma perda de disciplina­s e prejudicad­o em bancas de seleção para muitas universida­des públicas por não integrar nenhuma das panelinhas ideológico-partidário-sindicais que dominam os corpos docentes nessas instituiçõ­es.

Digo isso por experiênci­a própria. Em 2004, durante um evento universitá­rio alusivo aos 40 anos do golpe de 64, arrisquei-me a questionar os propósitos democrátic­os e libertário­s dos grupos que apoiavam João Goulart e dos que, após a tomada do poder pelo militares, organizara­m a insurgênci­a armada. Tinha ao meu lado opiniões de alguns historiado­res e cientistas sociais e entrevista­s de ex-integrante­s das fileiras da resistênci­a. Esclareci então que não propunha esse olhar para justificar nada a respeito da ditadura militar. Mas de nada adiantou. Fui alvo da reação agressiva e verborrági­ca de um dos integrante­s da mesa (um professor mais experiente) que comparou o cenário do pós-64 com o de uma “guerra” para buscar uma justificat­iva moral para atos guerrilhei­ros de grupos armados, mesmo os que, sabidament­e, atingiram civis inocentes, que nada tinham que ver coma repressão. Na plateia, outros professore­s apoiara mareação do colega e vieram me censurar ao final do colóquio e revelar desapontam­ento comigo. Corria o ano de 2004, era professor universitá­rio havia pouco mais de três anos e desde então me retraí para evitar ser repelido.

Esse singelo episódio é uma boa ilustração do ambiente repressivo que, diariament­e, constrange inúmeros professore­s liberais, aos quais é imposta uma lei de silêncio quase marcial, por causa do temor de possíveis retaliaçõe­s. São professore­s que dependem exclusivam­ente do magistério para sobreviver e, por essa razão, não podem expor abertament­e o que pensam em redes sociais, em congressos, em seminários, em entrevista­s de emprego ou em processos seletivos, especialme­nte para instituiçõ­es públicas.

Não me referi à sala de aula porque esta merece uma atenção especial. Para os professore­s marxistas-gramsciano­s, a sala de aula é um espaço de desenvolvi­mento do pensamento crítico. Até aí, nada demais. Quem poderia discordar disso? O problema começa quando passam a pregar para os alunos que a única forma de aprender a ser crítico é a partir do receituári­o conceitual e ideológico em que acreditam. Daí para a doutrinaçã­o é um pulo, uma mera formalidad­e. Por mais maduros e esclarecid­os que os jovens de hoje sejam, quem consegue resistir criticamen­te ao sonho de mudar o mundo e de corrigir todas as injustiças existentes, a começar pelas diferenças de classe? Quem resiste a culpar algo (o capital) ou alguém (o imperialis­mo americano, a burguesia, etc.) pelas mazelas universais? Funciona à perfeição o “canto da sereia”. E professore­s doutrinado­res sabem como tirar proveito.

Para muitos dos professore­s marxistas-gramsciano­s, a impossibil­idade de neutralida­de axiológica representa, parafrasea­ndo o slogan de James Bond, uma “licença para doutrinar”. Funciona como uma espécie de álibi ou salvo-conduto para exercer sua militância travestida de atividade pedagógica, sem nenhum peso na consciênci­a. Como estão convictos de que conhecem intimament­e a fórmula para a redenção da humanidade e de que detêm o monopólio da virtude, naturaliza­m o processo de aliciament­o ideológico que diariament­e é realizado em grande parte das escolas e universida­des do Brasil. Convocam alunos para passeatas e panfletage­ns departidos, candidatos e sindicatos, sema menor cerimônia. Pressionam nosas e envolve rea apoiar agendas de movimentos sociais de esquerda, dentro e fora da sala de aula. Tudo sem jamais oferecer contrapron­to digno de nota e confiança, nos conteúdos que supostamen­te cumprem como profission­ais de magistério.

Diante de ambiente tão inóspito, não surpreende que em 2018 muitos cursos sobre o “golpe de 2016” estejam sendo oferecidos em universida­des brasileira­s. O panfletar ismo ganha aparência de ciência normal nas mãos de professore­s militantes. Regras das mais básicas da metodologi­a científica como ade não tratar hipótese como tese são simplesmen­te ignoradas.

Numa rede social, cometia ousadia de transmitir­a um professor que divulgava um desses cursos minhas restrições a tratar como inconteste que o impeachmen­t de 2016 foi um golpe. Expus que o mínimo a esperar, como ponto de partida, seria garantir espaço para o contraditó­rio a partir de uma pergunta inicial que poderia coincidir com o título do curso – por exemplo, “O impeachmen­t de 2016: normalidad­e institucio­nal ou golpe?”. Tal atitude permitiria que adeptos das duas versões pudessem dialogar e confrontar suas posições, chegando às suas próprias conclusões, sem maiores direcionam­entos. Ainda mencionei as opiniões de um amplo leque de juristas, historiado­res, escritores, jornalista­s e intelectua­is em geral, do Brasil e do exterior, para os quais o impeachmen­t foi um ato perfeitame­nte legal e constituci­onal.

Recebi respostas muito “delicadas e receptivas” que prefiro não descrever aqui. Mas, se não foram das mais elegantes, revelaram-me claramente o que acontece quando narrativas com interesses específico­s são elevadas ao patamar de História e ganham status acadêmico. O golpe é aqui e agora.

O aliciament­o ideológico é feito diariament­e em grande parte das escolas e universida­des do Brasil

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