O Estado de S. Paulo

O outubro de nossas preocupaçõ­es

- •✽ BOLÍVAR LAMOUNIER

Oscript é difícil e o elenco deixa a desejar. Essa a proposição dominante a respeito da eleição presidenci­al e de seus efeitos na recuperaçã­o econômica do País. Dela podemos derivar uma conclusão provisória: em 2019 o quadro pode melhorar um pouco ou piorar muito.

Sobre o script não precisamos alongar-nos muito. O governo Temer conseguiu evitar o desastre iminente que se delineou durante o segundo mandato de Dilma Rousseff e chegou a aprovar alguns projetos importante­s no Congresso Nacional. Mas ao entrarmos no ano eleitoral as coisas tornaram-se mais difíceis, o tsunami da corrupção pôs toda aclasse política em xeque e as relações do Executivo com o Legislativ­o tornaram-se escorregad­ias, para dizer o mínimo. Não passamos nema reforma da Previdênci­a, com o que a questão fiscal continuará a pairar sobre o País como uma espada de Dâmocles, premonição de um possível retrocesso.

Mas avariável-chave, como comecei adizer,éo elenco. Temo saí uma dúzia e meia de candida tosou quase candidatos, todos por enquanto muito débeis, nenhum que arrebate os corações e as mentes. O aspecto mais curioso–paranã odizerp até tico–éaóptic apela qual os analistas e observador­es tentam decifrar esse caleidoscó­pio. A maioria se contorce para tentar encaixá-los na dicotomia esquerda x direita. Poucos se dão conta de que esse esquema já deu o que tinha para dar. Os augures (adivinhos) da Antiguidad­e provavelme­nte chegariam mais perto da realidade, pois se contentava­m em examinar o voo de certas aves ou as entranhas de certos animais, e aí diziam qualquer coisa, o que lhes viesseàm ente. Os príncipes ficavam contentes ei amou nãoà guerra conforme a “previsão” que lhes era passada.

Os termos esquerda e direita, como se recorda, provêm da Revolução Francesa; surgiram como indicativo­s das posições ocupadas na Assembleia Nacional pelos jacobinos e girondinos. Assumiram, desde então, pelo mundo inteiro, inúmeros significad­os, adaptando-se aos interesses políticos das forças em confronto em cada país. Tentar entendê-los por meio de uma análise rigorosa de seus conteúdos é perda de tempo, pois eles variam no tempo e de país para país. Funcionam como totens tribais. Esquerda é o totem dos que se arrogam uma maior sensibilid­ade social, um conhecimen­to mais preciso dos meios necessário­s para aliviar o sofrimento dos pobres e o caminho que leva ao paraíso terrestre – a “sociedade sem classes”. Direita são aqueles que, arrogando-se também os dois primeiros pontos, descartam o terceiro como uma fantasia (ou uma falcatrua intelectua­l) e conferem importânci­a decisiva à estabilida­de social, à segurança, à lei e à ordem. Desde o advento das pesquisas de opinião por amostragem, após a 2.ª Guerra Mundial, inúmeros levantamen­tos foram feitos sobre essa questão. Em dezenas de países, instados a informar o que entendiam pelos termos esquerda e direita, a maioria dos eleitores nem sequer conseguia oferecer definições genéricas como as que enunciei acima. Tanto nos países mais escolariza­dos do norte da Europa quanto naqueles, como o Brasil, onde a maioria é quase analfabeta, o porcentual que conseguia tal proeza sempre ficou entre 15% e 20%.

Não creio que algum pesquisado­r sério conteste essa afirmação. Portanto, na eleição de outubro, é fácil adivinhar que pelo menos uma dúzia dos candidatos tratará simplesmen­te de encontrar um “nicho” discursivo desocupado onde se possam abrigar: à direita, à esquerda, acima ou abaixo, como disse certa vez o prefeito Kassab ao lançar um novo partido, o PSD.

Consideran­do, pois, a anemia analítica da dicotomia esquerda x direita, haverá a esta altura algo útil que possamos dizer sobre a eleição e seus efeitos econômicos putativos? Creio que sim. Ao menos por ora, penso que o problema não é o perfil – de esquerda, centro ou direita – dos candidatos mais cotados, mas a dinâmica que vai predominar na campanha: polarizaçã­o entre um “esquerdist­a” e um “direitista” exaltados ou uma tendência “centrista”, com a maioria do eleitorado convergind­o para um ou mais candidatos de perfil moderado.

A contragost­o, dado o raciocínio que venho de expor, tento identifica­r alguns nomes. O mais fácil é o totem esquerdist­a, ou seja, o candidato ungido por Lula, admitindo-se que este conseguirá transferir para ele uma grande quantidade de votos. Fala-se em Fernando Haddad, mas aqui surge uma indagação. Haddad não tem perfil incendiári­o. Nesse cenário, teremos, então, os Stédiles e os Rainhas da vida, que já falam abertament­e em “guerra civil”, e talvez o próprio Lula, pressionan­do um candidato de índole centrista a assumir um papel radical. No polo oposto, com os dados hoje disponívei­s, temos Bolsonaro – e outra indagação. Oriundo das Forças Armadas, Bolsonaro presumivel­mente atrairá sobretudo eleitores aflitos com a segurança e quiçá adeptos de um modelo econômico nacional-estatizant­e; mas Paulo Guedes, o economista incumbido de elaborar seu programa de governo, abomina tal modelo.

Dada a manifesta inconsistê­ncia dos extremos, é plausível especular que o “centro”, por ora anêmico, venha a se fortalecer. Nesse nicho, o nome óbvio é Geraldo Alckmin, que tem a seu favor uma longa experiênci­a de governo no Estado de São Paulo e um temperamen­to afável. O problema, além dos modestos índices que ostenta nas pesquisas, é que a recuperaçã­o econômica dificilmen­te atingirá um ritmo suficiente para reverter a sede de sangue que se disseminou em grande parcela da sociedade.

A título de conclusão, devemos, pois, voltar à segunda das duas proposiçõe­s que enunciei no início. Dependendo da dinâmica eleitoral e do presidente eleito, a situação do País poderá melhorar um pouco, ou piorar muito. Chato é pensar que esse “piorar muito” poderá ser quase uma recaída na era das cavernas.

Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, É AUTOR DO LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERA­IS – A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS)

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