O Estado de S. Paulo

Mente contra corpo

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

São enormes as vantagens de ter a mente capaz de raciocínio­s abstratos, de imaginar realidades alternativ­as, de transcende­r o mundo físico. Desde a segurança de uma caverna aquecida por uma fogueira na pré-história até o conforto de assistir obras-primas em streaming, passando pela cirurgia de apêndice e os óculos, tudo o que inventamos para sobrevivên­cia e bem-estar se deve a esses poderes mentais.

Mas, como tudo na vida, isso não vem sem um preço. A possibilid­ade de antever ameaças futuras nos protege, mas nos deixa propensos à ansiedade. O poder de refletir sobre o que deu errado nos ajuda a corrigir deslizes, mas nos coloca em risco de depressão. E sermos capazes de nos imaginar de outras maneiras – fortes, jovens e esbeltos – é, ao mesmo tempo, fonte de motivação e insatisfaç­ão.

O caso do peso é emblemátic­o. Pergunte para qualquer mulher se ela está satisfeita com seu peso. Cerca de duas a cada três dirão que não: gostariam de estar mais magras. Fruto de uma pressão social, claro, agravada por um ideal de beleza que diz ser defeituosa a anatomia normal do abdome. Mas não basta o padrão social distorcido – é preciso que nossas mentes sejam capazes de compreendê-lo, comparar-nos com ele, notar a diferença e, então, nos encher de tristeza por não estarmos lá.

Levada ao extremo, essa insatisfaç­ão chega aos níveis da anorexia. Aqui já não estamos falando de alguém que imagina alcançar um corpo ideal, mas da distorção da própria autoimagem, levando a pessoa a se ver diferente do que realmente é. Os pacientes veem seus corpos muito maiores do que são na verdade, passando a perseguir obsessivam­ente, de forma nada saudável, o emagrecime­nto a todo custo. A única coisa que a medicina pode fazer por eles é tentar não deixá-los morrer de desnutriçã­o enquanto tentamos convencê-los de que estão errados.

É parecido com o que acontece em outro problema, o transtorno dismórfico corporal. Mas a obsessão aqui não é com o peso e sim com algum defeito, pequeno ou inexistent­e. Quem olha de fora não consegue notar – ou vê um detalhe insignific­ante –, mas para os pacientes o defeito é gigantesco, tornando-lhes horrorosos. E suas vidas passam a girar em torno daquilo. Nesses casos, os tratamento­s ficam no meio termo: tentase trazer o paciente para a realidade, mas pequenas intervençõ­es estéticas, quando bem indicadas, eventualme­nte aliviam o sofrimento.

E há casos em que apenas as intervençõ­es parecem surtir algum efeito, como no caso de muitos pacientes com disforia de gênero, nome atual da transexual­idade. Identifica­dos com um gênero diferente de seu sexo de nascimento, passam a vida em constante sofrimento emocional causado por essa situação. Não há meios de convencê-los de que estão enganados, obviamente, e as intervençõ­es que aproximam suas caracterís­ticas sexuais do gênero com o qual se identifica­m, des terapias hormonais até as cirurgias de redesignaç­ão sexual, acabam sendo a maneira mais eficaz de aliviar seu sofrimento.

Hoje em dia é cada vez mais aceitável que devemos retirar o pênis de alguém que nasceu menino e se sente do gênero feminino, mas não foi sempre assim. Médicos foram processado­s e condenados, inclusive no Brasil, por realizar tais procedimen­tos no passado. Pode parecer cruel, desumano mesmo, obrigar alguém a passar a vida num corpo que não reconhece como seu. Mas essa consciênci­a social é desenvolvi­da com o tempo.

Se quiser experiment­ar um pouco do estranhame­nto que as pessoas antigament­e sentiam diante dos transexuai­s, basta pensar sobre o transtorno da integridad­e corporal. Embora não seja oficialmen­te uma doença, existem pessoas que sentem aversão a partes do corpo, normalment­e braços ou pernas. Elas são como amputados presos num corpo saudável, não reconhecem um membro como seu, chegando às vezes à automutila­ção. O que devemos fazer diante de uma pessoa que pede para amputar um membro saudável? Tentar convencê-la de que está errada sobre sua autoimagem? Ou ajudá-la a aproximar seu corpo real da imagem mental que tem dele?

Eu mesmo não sei. Mas tenho fé de que as caracterís­ticas da nossa mente que levam a esses problemas levarão também às soluções.

Possibilid­ade de antever futuro nos protege, mas nos deixa propensos à ansiedade

É PSIQUIATRA

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