Mente contra corpo
São enormes as vantagens de ter a mente capaz de raciocínios abstratos, de imaginar realidades alternativas, de transcender o mundo físico. Desde a segurança de uma caverna aquecida por uma fogueira na pré-história até o conforto de assistir obras-primas em streaming, passando pela cirurgia de apêndice e os óculos, tudo o que inventamos para sobrevivência e bem-estar se deve a esses poderes mentais.
Mas, como tudo na vida, isso não vem sem um preço. A possibilidade de antever ameaças futuras nos protege, mas nos deixa propensos à ansiedade. O poder de refletir sobre o que deu errado nos ajuda a corrigir deslizes, mas nos coloca em risco de depressão. E sermos capazes de nos imaginar de outras maneiras – fortes, jovens e esbeltos – é, ao mesmo tempo, fonte de motivação e insatisfação.
O caso do peso é emblemático. Pergunte para qualquer mulher se ela está satisfeita com seu peso. Cerca de duas a cada três dirão que não: gostariam de estar mais magras. Fruto de uma pressão social, claro, agravada por um ideal de beleza que diz ser defeituosa a anatomia normal do abdome. Mas não basta o padrão social distorcido – é preciso que nossas mentes sejam capazes de compreendê-lo, comparar-nos com ele, notar a diferença e, então, nos encher de tristeza por não estarmos lá.
Levada ao extremo, essa insatisfação chega aos níveis da anorexia. Aqui já não estamos falando de alguém que imagina alcançar um corpo ideal, mas da distorção da própria autoimagem, levando a pessoa a se ver diferente do que realmente é. Os pacientes veem seus corpos muito maiores do que são na verdade, passando a perseguir obsessivamente, de forma nada saudável, o emagrecimento a todo custo. A única coisa que a medicina pode fazer por eles é tentar não deixá-los morrer de desnutrição enquanto tentamos convencê-los de que estão errados.
É parecido com o que acontece em outro problema, o transtorno dismórfico corporal. Mas a obsessão aqui não é com o peso e sim com algum defeito, pequeno ou inexistente. Quem olha de fora não consegue notar – ou vê um detalhe insignificante –, mas para os pacientes o defeito é gigantesco, tornando-lhes horrorosos. E suas vidas passam a girar em torno daquilo. Nesses casos, os tratamentos ficam no meio termo: tentase trazer o paciente para a realidade, mas pequenas intervenções estéticas, quando bem indicadas, eventualmente aliviam o sofrimento.
E há casos em que apenas as intervenções parecem surtir algum efeito, como no caso de muitos pacientes com disforia de gênero, nome atual da transexualidade. Identificados com um gênero diferente de seu sexo de nascimento, passam a vida em constante sofrimento emocional causado por essa situação. Não há meios de convencê-los de que estão enganados, obviamente, e as intervenções que aproximam suas características sexuais do gênero com o qual se identificam, des terapias hormonais até as cirurgias de redesignação sexual, acabam sendo a maneira mais eficaz de aliviar seu sofrimento.
Hoje em dia é cada vez mais aceitável que devemos retirar o pênis de alguém que nasceu menino e se sente do gênero feminino, mas não foi sempre assim. Médicos foram processados e condenados, inclusive no Brasil, por realizar tais procedimentos no passado. Pode parecer cruel, desumano mesmo, obrigar alguém a passar a vida num corpo que não reconhece como seu. Mas essa consciência social é desenvolvida com o tempo.
Se quiser experimentar um pouco do estranhamento que as pessoas antigamente sentiam diante dos transexuais, basta pensar sobre o transtorno da integridade corporal. Embora não seja oficialmente uma doença, existem pessoas que sentem aversão a partes do corpo, normalmente braços ou pernas. Elas são como amputados presos num corpo saudável, não reconhecem um membro como seu, chegando às vezes à automutilação. O que devemos fazer diante de uma pessoa que pede para amputar um membro saudável? Tentar convencê-la de que está errada sobre sua autoimagem? Ou ajudá-la a aproximar seu corpo real da imagem mental que tem dele?
Eu mesmo não sei. Mas tenho fé de que as características da nossa mente que levam a esses problemas levarão também às soluções.
Possibilidade de antever futuro nos protege, mas nos deixa propensos à ansiedade
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É PSIQUIATRA