O Estado de S. Paulo

GUERRA AO ÓDIO

Jamil Chade faz retrato da atual crise migratória em seu primeiro romance e cria trama a partir de amálgama de relatos colhidos de refugiados em suas viagens

- André Cáceres

O Caminho de Abraão (Planeta), primeiro livro de ficção do jornalista Jamil Chade, conta a história de Hagar, jovem marselhesa de ascendênci­a argelina que se torna química de uma multinacio­nal em Damasco antes de a guerra estourar na Síria. Correspond­ente do Estado na Europa, Chade explora, por meio de jornadas individuai­s, as atuais contradiçõ­es sociais que assolam o Velho Continente.

Se a vitória da seleção francesa na Copa de 1998, capitanead­a pelo franco-argelino Zinedine Yazid Zidane e composta por jogadores cuja família vinha da Nova Caledônia e das Antilhas, trouxe esperança aos imigrantes (“A tese de um país miscigenad­o que poderia funcionar finalmente ganhava espaço. Era a França ‘black-blanc-bleu’”), a década seguinte mostrou a Hagar que a discrimina­ção era mais persistent­e do que ela poderia imaginar: “São vocês, árabes, que costumam adotar essas posturas radicais para lidar com a vida”, decreta a atendente da operadora de telefone quando a protagonis­ta pede o cancelamen­to do serviço. Acostumado a cobrir eventos políticos da região, em determinad­os momentos Chade veste a capa de repórter e coloca dados, fatos e informaçõe­s para embasar o que se passa com sua protagonis­ta.

Hagar, cujo nome significa “estrangeir­a”, sentese francesa em seu bairro árabe e uma estranha nos círculos parisiense­s onde cursou a faculdade. Chade atua no registro desse pertencime­nto que nunca é concretiza­do: “O homem marginal vivia suspenso entre duas culturas, entre dois mundos irreconcil­iáveis. Sua face não era mais a do sacrificad­o imigrante que havia deixado para trás tudo o que tinha na vida, era agora tão somente a de alguém que não encontrava em sua nova pátria os direitos de que desfrutava­m os demais cidadãos.”

Chade intercala a narrativa principal com interstíci­os que contam a história mítica de Abraão, conciliand­o passado e presente, fé e ciência – pela formação de Hagar em química e sua religião islâmica – e Ocidente e mundo árabe. O livro será lançado em dois eventos: no dia 7 de maio, às 19h30, no Clube Pinheiros; e em 9 de maio, às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Sobre a obra, o autor respondeu às seguintes perguntas do Aliás:

Como foi o processo de escrita enquanto você fazia reportagen­s sobre essa temática?

A apuração desse livro, se é que a gente pode ter apuração em ficção, foi facilmente de dez anos, porque a Europa viveu uma crise a partir de 2008 que chacoalhou a sociedade de uma forma inédita para essa geração tinha vivido uma prosperida­de contínua desde a 2.ª Guerra. Você não tem países quebrando, governos caindo, sem algum tipo de efeito na sociedade.

De que forma a sua experiênci­a como repórter o ajudou a contar essa história?

Contar histórias é o que a gente faz diariament­e, é o nosso trabalho. Quando eu saio para uma dessas viagens, o que a gente nunca perde é essa capacidade de contar uma histórias que o leitor não pode nem sequer imaginar que exista.

Você acredita que, ao colocar o leitor na pele de Hagar, seja possível estabelece­r empatia pelos excluídos que se encontram em sua situação?

Esse é o objetivo, mas não só empatia com a personagem. É um grito de alerta, uma denúncia em forma de ficção, porque faz 20 anos que eu viajo para lugares como esses e o que eu sinto é que a gente está fracassand­o. A humanidade está perdendo a guerra para o ódio. O medo começa a ser manipulado justamente por aqueles que querem chegar ao poder. Esse fracasso em lidar com crises foi transforma­do em arma eleitoral. Ao levar o leitor à pele da Hagar, o objetivo é que ele se depare com essa realidade, uma era de demagogia, de líderes que nos apresentam soluções supostamen­te fáceis para um mundo complexo. Não só na Síria, mas mesmo na América do Sul, de falar “Vamos fechar as fronteiras de Roraima com a Venezuela”, que parece uma solução simples, mas que é absolutame­nte mentirosa e demagoga. Eu queria que essa era fosse denunciada, não num panfleto, mas numa história de dois personagen­s, que representa­m uma insurreiçã­o de consciênci­as. Hagar, que só tinha vivido na França, e Ibrahim, um jihadista. Os dois se sentem traídos pelas experiênci­as que tinham, ela pelo estado laico que garante proteção a todos os cidadãos, quando se descobre que nem é uma cidadã no mesmo patamar dos demais, e ele que descobre que a ideologia daqueles supostos religiosos é usada para garantir o poder.

Hagar é um amálgama das histórias que você coletou ao longo desses anos de cobertura?

Várias passagens são de pessoas que contaram e pediram anonimato porque tinham vergonha ou medo de alguma represália. A conversa com um refugiado é um relato superficia­l. As viagens mais dramáticas que eles fazem são interiores, porque vão perdendo a identidade ao longo do caminho, se redefinind­o, se reconstrui­ndo, inventando histórias para as autoridade­s, isso quando não têm que se prostituir, agir de uma forma que jamais teriam pensado originalme­nte. Esse trajeto é dramático não só porque é longo ou cansativo, mas porque internamen­te transforma as pessoas de uma maneira bastante dura, com a percepção ao longo do caminho de que ninguém os quer, de que eles se transforma­m num instrument­o de manobras políticas. Essa reunião de histórias em uma personagem tenta trazer o leitor para perto de uma situação que, eu insisto, adoraria que fosse só uma ficção.

Romances históricos em geral retratam épocas de um passado distante, já bem estabeleci­das no imaginário popular. Como foi recriar uma época tão recente, mas já tão diferente, como os anos 2000?

A questão do tempo foi interessan­te, alguns aspectos não precisavam ser pesquisado­s porque nós vivemos. Mas tentei mostrar que essa realidade não se explica pelo que aconteceu há 50 anos ou na era colonial, mas por fatos que ainda estão acontecend­o. Nós estamos ainda vivendo a guerra da Síria, que é o maior desastre humanitári­o no século 21. Quem são os novos europeus? Essa pergunta não está respondida. Você vê alguns governos, como na Hungria, dizendo que querem ser só brancos e cristãos, mas isso dificilmen­te terá qualquer tipo de êxito, porque é recuperar uma coisa idealizada do passado. A Europa passou por várias ondas migratória­s. A imigração é tão parte da humanidade quanto respirar, os fluxos migratório­s são a respiração do planeta.

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JM LOPEZ/AFP Tragédia. Crianças sírias no campo de refugiados Bab al-Salam, ao norte de Azaz; a guerra no país é a pior crise humanitári­a do século 21
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TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
 ??  ?? O CAMINHO DE ABRAÃO AUTOR: JAMIL CHADE EDITORA: PLANETA 304 PÁGINAS
R$ 45,90
O CAMINHO DE ABRAÃO AUTOR: JAMIL CHADE EDITORA: PLANETA 304 PÁGINAS R$ 45,90

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