GUERRA AO ÓDIO
Jamil Chade faz retrato da atual crise migratória em seu primeiro romance e cria trama a partir de amálgama de relatos colhidos de refugiados em suas viagens
O Caminho de Abraão (Planeta), primeiro livro de ficção do jornalista Jamil Chade, conta a história de Hagar, jovem marselhesa de ascendência argelina que se torna química de uma multinacional em Damasco antes de a guerra estourar na Síria. Correspondente do Estado na Europa, Chade explora, por meio de jornadas individuais, as atuais contradições sociais que assolam o Velho Continente.
Se a vitória da seleção francesa na Copa de 1998, capitaneada pelo franco-argelino Zinedine Yazid Zidane e composta por jogadores cuja família vinha da Nova Caledônia e das Antilhas, trouxe esperança aos imigrantes (“A tese de um país miscigenado que poderia funcionar finalmente ganhava espaço. Era a França ‘black-blanc-bleu’”), a década seguinte mostrou a Hagar que a discriminação era mais persistente do que ela poderia imaginar: “São vocês, árabes, que costumam adotar essas posturas radicais para lidar com a vida”, decreta a atendente da operadora de telefone quando a protagonista pede o cancelamento do serviço. Acostumado a cobrir eventos políticos da região, em determinados momentos Chade veste a capa de repórter e coloca dados, fatos e informações para embasar o que se passa com sua protagonista.
Hagar, cujo nome significa “estrangeira”, sentese francesa em seu bairro árabe e uma estranha nos círculos parisienses onde cursou a faculdade. Chade atua no registro desse pertencimento que nunca é concretizado: “O homem marginal vivia suspenso entre duas culturas, entre dois mundos irreconciliáveis. Sua face não era mais a do sacrificado imigrante que havia deixado para trás tudo o que tinha na vida, era agora tão somente a de alguém que não encontrava em sua nova pátria os direitos de que desfrutavam os demais cidadãos.”
Chade intercala a narrativa principal com interstícios que contam a história mítica de Abraão, conciliando passado e presente, fé e ciência – pela formação de Hagar em química e sua religião islâmica – e Ocidente e mundo árabe. O livro será lançado em dois eventos: no dia 7 de maio, às 19h30, no Clube Pinheiros; e em 9 de maio, às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Sobre a obra, o autor respondeu às seguintes perguntas do Aliás:
Como foi o processo de escrita enquanto você fazia reportagens sobre essa temática?
A apuração desse livro, se é que a gente pode ter apuração em ficção, foi facilmente de dez anos, porque a Europa viveu uma crise a partir de 2008 que chacoalhou a sociedade de uma forma inédita para essa geração tinha vivido uma prosperidade contínua desde a 2.ª Guerra. Você não tem países quebrando, governos caindo, sem algum tipo de efeito na sociedade.
De que forma a sua experiência como repórter o ajudou a contar essa história?
Contar histórias é o que a gente faz diariamente, é o nosso trabalho. Quando eu saio para uma dessas viagens, o que a gente nunca perde é essa capacidade de contar uma histórias que o leitor não pode nem sequer imaginar que exista.
Você acredita que, ao colocar o leitor na pele de Hagar, seja possível estabelecer empatia pelos excluídos que se encontram em sua situação?
Esse é o objetivo, mas não só empatia com a personagem. É um grito de alerta, uma denúncia em forma de ficção, porque faz 20 anos que eu viajo para lugares como esses e o que eu sinto é que a gente está fracassando. A humanidade está perdendo a guerra para o ódio. O medo começa a ser manipulado justamente por aqueles que querem chegar ao poder. Esse fracasso em lidar com crises foi transformado em arma eleitoral. Ao levar o leitor à pele da Hagar, o objetivo é que ele se depare com essa realidade, uma era de demagogia, de líderes que nos apresentam soluções supostamente fáceis para um mundo complexo. Não só na Síria, mas mesmo na América do Sul, de falar “Vamos fechar as fronteiras de Roraima com a Venezuela”, que parece uma solução simples, mas que é absolutamente mentirosa e demagoga. Eu queria que essa era fosse denunciada, não num panfleto, mas numa história de dois personagens, que representam uma insurreição de consciências. Hagar, que só tinha vivido na França, e Ibrahim, um jihadista. Os dois se sentem traídos pelas experiências que tinham, ela pelo estado laico que garante proteção a todos os cidadãos, quando se descobre que nem é uma cidadã no mesmo patamar dos demais, e ele que descobre que a ideologia daqueles supostos religiosos é usada para garantir o poder.
Hagar é um amálgama das histórias que você coletou ao longo desses anos de cobertura?
Várias passagens são de pessoas que contaram e pediram anonimato porque tinham vergonha ou medo de alguma represália. A conversa com um refugiado é um relato superficial. As viagens mais dramáticas que eles fazem são interiores, porque vão perdendo a identidade ao longo do caminho, se redefinindo, se reconstruindo, inventando histórias para as autoridades, isso quando não têm que se prostituir, agir de uma forma que jamais teriam pensado originalmente. Esse trajeto é dramático não só porque é longo ou cansativo, mas porque internamente transforma as pessoas de uma maneira bastante dura, com a percepção ao longo do caminho de que ninguém os quer, de que eles se transformam num instrumento de manobras políticas. Essa reunião de histórias em uma personagem tenta trazer o leitor para perto de uma situação que, eu insisto, adoraria que fosse só uma ficção.
Romances históricos em geral retratam épocas de um passado distante, já bem estabelecidas no imaginário popular. Como foi recriar uma época tão recente, mas já tão diferente, como os anos 2000?
A questão do tempo foi interessante, alguns aspectos não precisavam ser pesquisados porque nós vivemos. Mas tentei mostrar que essa realidade não se explica pelo que aconteceu há 50 anos ou na era colonial, mas por fatos que ainda estão acontecendo. Nós estamos ainda vivendo a guerra da Síria, que é o maior desastre humanitário no século 21. Quem são os novos europeus? Essa pergunta não está respondida. Você vê alguns governos, como na Hungria, dizendo que querem ser só brancos e cristãos, mas isso dificilmente terá qualquer tipo de êxito, porque é recuperar uma coisa idealizada do passado. A Europa passou por várias ondas migratórias. A imigração é tão parte da humanidade quanto respirar, os fluxos migratórios são a respiração do planeta.