O Estado de S. Paulo

REQUINTADA REVISÃO DE DUCCIO

- Antonio Gonçalves Filho

Em sua exposição na Galeria Millan, aberta até dia 28, o pintor Paulo Pasta vence um desafio que, no passado, foi igualmente aceito pelo escultor inglês Anthony Caro (1924-2013), o de atualizar obras-primas dos velhos mestres como os fragmentos do grande retábulo de Duccio pintado para o altar-mor da catedral de Siena (concluído em 1311 e desmembrad­o em 1771), que se encontram hoje no acervo da National Gallery de Londres. No caso de Caro, a mesma National Gallery, em 1999, propôs a 24 artistas contemporâ­neos que reinterpre­tassem uma obra de sua coleção. O escultor escolheu as pinturas do altar Maestà.

Sete séculos separavam Duccio de Anthony Caro quando o escultor inglês aceitou o convite da National Gallery, apresentan­do sete diferentes esculturas que retiravam as figuras santas do altar do pintor italiano, deixando à mostra apenas sua estrutura arquitetôn­ica, não mais subordinad­a a uma construção espacial que privilegia­va a presença humana nessas pinturas.

Não foi por mero capricho que Caro extraiu as figuras do arcanjo Gabriel e a Virgem Maria da Anunciação original de Duccio que fazia parte do altar-mor de Siena. Havia um motivo justo, segundo ele: a arquitetur­a, em Duccio, não tinha mais um papel passivo como cenário dessa Anunciação. Ela, de fato, moldava essa pintura, articuland­o, ainda segundo Caro, sua composição estrutural e espacial. Além disso, concluiu o escultor, a arquitetur­a era a linha mestra da narrativa.

Paulo Pasta, numa visita à National Gallery há dois anos, identifico­u igualmente na Anunciação de Duccio um bom pretexto para a discussão de um tema contemporâ­neo, o da planaridad­e na pintura. Ligada às fontes bizantinas, Duccio estava menos interessad­o no volume plástico das formas que Giotto, por exemplo. Duccio mudou a história da pintura também por sua visão cromática polifônica, como bem observou Argan. Mais que a pintura de Giotto, que buscava a harmonia, a de Duccio é rigorosame­nte cromática: o mestre de Siena reinventou o gótico com um refinado senso de cor e composição.

Apesar disso, a tela de Duccio reproduzid­a acima, ao lado da pintura mais recente de Pasta, que pode ser vista na Millan, chama-se Giotto. Tem uma explicação: como pré-renascenti­sta, Giotto carregou sua pintura de um sentido humanista, elevando o homem à condição de santo. Ao retirar as figuras do Duccio original, Paulo Pasta oferece em sua reinterpre­tação uma epifânica vibração cromática que sugere o halo das figuras santas de Giotto, que promove o homem comum ao espaço sagrado. Pasta identifica-se com essa visão humanista de Giotto, mas leva em conta as razões que conduziram Duccio a separar a Virgem Maria do arcanjo Gabriel, sugerindo uma distância abissal entre ela e o mundo real. Separação, evoque-se, determinad­a por uma coluna, elemento onipresent­e na pintura de Pasta.

Se, antes, Pasta pintava o espaço entre as coisas, numa alusão à pintura dos metafísico­s italianos, hoje ele aprofunda a relação entre forma e cor ao introduzir uma linha diagonal (compare o lado esquerdo superior de sua tela Giotto com o da Anunciação de Duccio) que afeta nossa percepção visual, fazendo-nos descobrir que espaço interno (o da casa da Virgem) e externo (o terreno, do homens) se equivalem. Tudo é sagrado.

 ?? FILIPE BERNDT/GALERIA MILLAN ?? Espaço sagrado. Um fragmento da ‘Maestà’ de Duccio (à esquerda) serviu de inspiração para a tela ‘Giotto’, pintada por Paulo Pasta, que resume a separação entre o Arcanjo e a Virgem pela coluna
FILIPE BERNDT/GALERIA MILLAN Espaço sagrado. Um fragmento da ‘Maestà’ de Duccio (à esquerda) serviu de inspiração para a tela ‘Giotto’, pintada por Paulo Pasta, que resume a separação entre o Arcanjo e a Virgem pela coluna
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NATIONAL GALLERY DE LONDRES

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