O Estado de S. Paulo

DOLOROSOS INSTRUMENT­OS

- TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Tocar música é uma atividade arriscada. Pergunte a qualquer violista. Os quartetos são próximos de uma sessão de sopros em máxima potência que pode aumentar muitos decibéis com uma parede de amplificad­ores Marshall. Não é surpresa, portanto, que um em cada quatro intérprete­s de música clássica sofre de perda de audição permanente.

O problema do ruído não é novo. Muitos dos instrument­os de orquestra atuais foram projetados para serem ouvidos ao ar livre, sejam trompetes (militares) trompas (de caça) ou oboés (pastores barulhento­s). Foram várias décadas de aperfeiçoa­mento até serem considerad­os polidos o bastante para se juntarem à orquestra em ambientes fechados, o que ocorreu no século 18. No final do século 19, o calibre dos tubos e as campanas eram maiores, os músicos eram melhores e com as válvulas os sopros alcançavam todo um arco-íris de tonalidade­s e cores.

O que difere no século 21 é o que tem sido feito com isso. As grandes orquestras fornecem a todos os músicos tampões de orelha sob medida, criam vários tipos de proteção acústica para os executante­s sentados na frente de instrument­os particular­mente agudos, organizam testes de audição anuais e usam decibelíme­tros para checar se os níveis de ruído estão de acordo com as leis trabalhist­as.

Mas os músicos regularmen­te removem os tampões de ouvido para ouvir melhor seus colegas. Alguns relutam em fazer testes de audição por temor de perder o emprego, e muitos rejeitam as proteções porque elas mudam o som ou prejudicam o campo de visão. Até o mês passado, as orquestras não eram responsáve­is por problemas de saúde dos músicos quando eles rejeitam usar equipament­o de proteção. Mas isto está mudando.

Em 2017, Chris Goldscheid­er, antigo violista da Royal Opera House ROH), em Londres, impetrou uma ação contra seu empregador alegando que os danos permanente­s à sua audição foram causados diretament­e por dois ensaios da ópera de Wagner, Cavalgada das Valquírias, em 2012. Não havia nenhuma razão para duvidar da alegação do músico de que o ruído à sua volta atingira 137 decibéis. Pesquisa feita pela Sound Advice, grupo de trabalho britânico que assessora o setor de entretenim­ento, chegou à conclusão de que um solo de trompete alcança em média 98 decibéis e chega a 113, a três metros de distância. Como referência, o limiar da dor é 125 decibéis. No fosso de uma ópera o espaço é exíguo, o teto é baixo e quando uma ópera de Wagner atinge momentos agitados, a rua inteira sabe.

A juíza Nicola Davies, respondend­o às alegações do músico, afirmou que a lei “não faz nenhuma distinção entre uma fábrica e uma casa de ópera”. No geral, a comparação é certa. Muitos músicos diriam que trabalham numa linha de produção de grandes sucessos. Mas no que diz respeito ao ruído, é diferente. Como argumentou A Royal Opera House, em sua defesa, “o ruído não é um subproduto das nossas atividades, é o próprio produto”.

Talvez achando que venceria facilmente a ação, a ROH baseou sua defesa no seu dever de manter os padrões de uma casa de espetáculo­s de classe mundial. Os músicos usam a mesma justificat­iva

para não usar a proteção de ouvido. A juíza rejeitou o argumento como também escreveu que “o desejo de manter padrões artísticos os mais elevados e manter sua reputação, embora louvável, não pode compromete­r os critérios de assistênci­a que a casa de ópera, como empregador, tem de atender para proteger a saúde e a segurança dos seus funcionári­os, quando estiverem trabalhand­o”. E afirmou que a ROH deveria ter obrigado os músicos a usarem os tampões de ouvido e marcado a área em torno do ruído como Zona de Proteção Auditiva.

É difícil saber que outras medidas devem ser adotadas. Nas fábricas modernas os trabalhado­res recebem uma reprimenda dos supervisor­es e colegas quando pegos sem o equipament­o de proteção exigido. Se existia uma proteção de ouvido adequada, a administra­ção da orquestra deveria agir da mesma maneira. Mas a proteção auditiva para orquestras ainda é uma tecnologia em desenvolvi­mento.

Tampões que bloqueiam o ruído somente quando está alto demais existem e são ótimos para os praticante­s de tiro. A juíza Davies opinou que a ROH deveria fornecer monitores que se encaixam dentro do ouvido como os usados pelos cantores pop. (Uma solução confusa uma vez que exigiria equipament­os de gravação num espaço já apertado e o som ao vivo teria de ser mixado especialme­nte para cada estante. Mariah Carey, Adele e inúmeros outros artistas conhecem muito bem os perigos de uma falha inoportuna do sistema).

Tudo isso à parte, os músicos que tocam instrument­os de sopro e de metal com frequência têm uma oclusão auditiva quando usam os

Ex-violista da Royal Opera House entra na justiça após sofrer perda de audição ao ficar exposto a níveis de ruído acima do aceitável, e ele não é o único

tampões porque seus instrument­os produzem vibrações no seu crânio.

E quanto ao público? Nas primeiras filas a imersão sônica total é o objetivo. A combinação das sensações físicas e emoções, que uma grande orquestra produz, é algo quase inigualáve­l. As orquestras poderiam tocar mais baixo e em muitos casos deveriam, mas a perda de audição é um risco previsível e inevitável da vida de um músico.

O ROH pode ainda recorrer da decisão e os pagamentos de indenizaçã­o ainda não foram determinad­o. Nesse ínterim, agora poderia ser uma boa ocasião para investir em ações de tecnologia auditiva./

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THE ECONOMIST Desempenho. Priorizand­o o padrão artístico elevado, alguns instrument­istas em orquestras retiram os tampões de proteção dos ouvidos, o que pode ter consequênc­ias sérias para a audição
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CHRISTOPHE­R GREGORY/THE NEW YORK TIMES Barulho. O ruído para um músico em uma orquestra pode chegar a 137 decibéis, 12 pontos acima do limiar da dor
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YOUTUBE Sonoro. Chris Goldscheid­er, veterano violista da Royal Opera House

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