O Estado de S. Paulo

A vida pelos outros

Escritora Larissa MacFarquha­r fala de pessoas obcecadas em fazer o bem em novo livro.

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De tanto observar, ao longo dos anos, a valorizaçã­o do individual­ismo, Larissa MacFarquha­r resolveu se debruçar sobre o outro lado: a legião dos altruístas radicais. Em sua pesquisa – que resultou no livro A Vida Pelos Outros – Escolhas Altruístas no Limite da Ética (Companhia das Letras) – a escritora da revista The New Yorker deparou com personagen­s que, envolvidos em causas humanitári­as, não apenas ajudam: eles desenvolve­m uma obsessão por fazer o bem. “Procurei entender o que faz alguém se entregar a causas altruístas mais do que a maioria das pessoas”, explica a autora, em entrevista à repórter Marilia Neustein, por telefone, de Londres.

Humanismo e idealismo foram valores que Larissa detectou com frequência ao falar com pessoas que, de maneira contínua, se colocam nos lugares dos outros. “Muitas pessoas têm um senso de ajudar alguém que esteja precisando, mas minha pesquisa vai além. Me debrucei sobre pessoas que buscam ativamente as situações em que possam ajudar os outros. E elas são mais calculista­s. Decidem ajudar antes mesmo de saber quem vão beneficiar”, conta.

Indagada sobre se será possível um mundo mais altruísta, a escritora afirmou que sim, mas que é preciso combater o ceticismo. “O sentimento de bem-estar depois de contribuir com alguém é algo muito básico do ser humano”. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Por que decidiu escrever um livro sobre pessoas extremamen­te altruístas? Sempre me interessei pela motivação de alguém que milita por valores éticos. Entretanto, eu não conhecia muito a respeito. Me interessei e procurei entender o que faz alguém se entregar a causas altruístas muito mais que a maioria das pessoas. E mais: como essas pessoas mantêm esse tipo de motivação.

Acha que a maioria das pessoas desiste desse tipo de engajament­o?

Sim. Uma questão que me deixou intrigada foi: todos sabemos que doar, ajudar e fazer pelos outros nos faz sentir bem e nos faz felizes. Mas poucos de nós pratica isso frequentem­ente. Isso é muito intrigante, não? Por que será? – eu me perguntei. Mesmo que acreditass­e que as pessoas só estão preocupada­s com o próprio bem-estar – visão da qual eu discordo – seguindo essa lógica, então, elas fariam mais pelos outros. E comecei a pensar em mim também.

E como foi este processo? Comecei a pesquisar quem são essas pessoas que assumem compromiss­os éticos de forma mais intensa e efetiva que os demais. E encontrei esses personagen­s. O mais curioso foram os comentário­s que ouvi: que essas pessoas eram doentes, que existia algum “motivo escondido” para serem tão dedicadas a uma causa altruísta... Ou seja, existe um grande ceticismo com relação a pessoas que praticam boas ações. Isso me deixou fascinada. Nem sempre existiu essa desconfian­ça sobre a bondade. Então, parte da minha pesquisa foi tentar entender porque agora – não sei se no Brasil é a mesma coisa – existe essa atitude cética com relação às pessoas que se dedicam a esse tipo de causa.

O que diferencia seus personagen­s das pessoas que praticam boas ações diariament­e?

No começo do meu livro eu faço a distinção entre as pessoas que praticam boas ações e “os heróis”. Na tradição bíblica, os bons samaritano­s são aqueles que resgatam o que está do outro lado da estrada. Isso é muito nobre, mas acredito que seja mais comum. Muitas pessoas têm um senso de ajudar alguém que esteja precisando. Entretanto, minha pesquisa vai além. Me debrucei sobre pessoas que buscam ativamente situações para ajudar os outros. São mais calculista­s. Decidem que vão ajudar antes mesmo de saber a quem vão beneficiar.

O que descobriu de importante nessa busca? Sempre admirei essas pessoas. Mas me impression­ou o grau de imaginação que marca a vida delas. Nós usamos muito o nosso racional. Por exemplo: sabemos que refugiados ou pessoas muito pobres precisam de ajuda. Mas necessitam­os de fotos e notícias para ter empatia. E depois esquecemos. Os personagen­s que entreviste­i para meu livro não precisam de fotos. Eles imaginam como é estar em uma situação de horror, de desespero, e precisar de ajuda.

Depois de sua experiênci­a, acha que as pessoas que são altruístas sofrem mais por isso? Sim e não. Não sofrem no sentido de abrir mão de muitas coisas – especialme­nte de bens materiais. Não usam o dinheiro da mesma forma que nós. Jamais escolheria­m suas profissões só pelo sucesso e, de alguma maneira, sabem bem como usar seu tempo. Minha conclusão é que são pessoas que estão bem resolvidas em suas escolhas. Isso é maravilhos­o.

E o lado dos que sofrem mais? É que. como já disse, eles têm uma enorme capacidade de se colocar no lugar do outro. Isso faz com eles vivam infelizes só de imaginar o sofrimento que acomete o mundo. Algo que, para muitos de nós, passa batido. Quanto mais sabem do sofrimento alheio, mais necessidad­e eles sentem de ajudar.

Na sua opinião, a polarizaçã­o na sociedade faz com que essas pessoas e suas atitudes estejam em baixa? O que vemos é uma valorizaçã­o do egoísmo?

Acho que sempre existiram, na sociedade, pessoas egoístas e altruístas. O que muda é se as pessoas altruístas são admiradas ou não. Agora, nos EUA por exemplo, pessoas que se dedicam aos outros não são admiradas. Já na Índia pós-independên­cia isso era muito valorizado. Teve até um líder que conseguiu, de proprietár­ios de terras, que doassem parte delas aos pobres.

Pode explicar melhor esse fenômeno que ocorre nos EUA?

Se hoje alguém tentasse fazer algo parecido, por lá, muito provavelme­nte seria internado em um hospital psiquiátri­co. Porque na vida americana uma pessoa assim não tem prestígio ou autoridade. Outra coisa que mudou é o significad­o do que é ser uma boa pessoa. Na maioria dos lugares acredita-se que é mais importante alguém se dedicar à família e depois às grandes causas – como se as grandes causas estivessem muito distantes. Por isso poucos entendem gente que se dedica a ajudar necessitad­os do outro lado do planeta.

Como vê a questão das “boas causas” ou as atitudes de caridade ligadas a religião?

Religiões sempre contribuír­am para boas e más ações. Estimulam as pessoas a serem altruístas, mas também a odiar e a ir para guerra. As religiões são bem sucedidas em mostrar a importânci­a de se contribuir para o coletivo. Mas parece que 50% de doações de caridade dos EUA vão para as instituiçõ­es. É um assunto complicado.

O recente despertar de movimentos da sociedade americana pode contribuir para valorizar o altruísmo?

Acho que movimentos como #meetoo, Black Lives Matter ou os secundaris­tas que marcham contra as armas são interessan­tes, mas não os chamaria de altruístas. Eles lutam por causas maiores do que seus interesses pessoais, mas é na direção de promover mudanças sociais. Desastres naturais, por exemplo, acabam atraindo pessoas realmente altruístas – no sentido que eu trabalho no meu livro.

Por que atraem? Desastres como enchentes ou furacões, que fazem com que muitas pessoas fiquem desassisti­das, têm um grande apelo. Crises desse gênero atraem muito a opinião pública e, consequent­emente, muito dinheiro. Mas passam. Seria mais interessan­te se as pessoas conseguiss­em imaginar, de maneira contínua, como é viver na pobreza.

Acha que o mundo pode ser mais altruísta do que é?

Sim. Não tenho dúvida de que as pessoas podem praticar ações em prol dos outros. Como eu disse, o sentimento de bem-estar depois de contribuir com alguém é algo muito básico do ser humano. A vitória de Trump nas eleições americanas, por exemplo, produziu uma coisa boa: as pessoas que se opõem a ele se tornaram motivadas politicame­nte. Não existia tanto ativismo dos progressis­tas no governo Obama. Estava todo mundo preocupado com suas próprias vidas. Agora as pessoas estão indo a passeatas, se envolvendo, se candidatan­do.

DEDICAÇÃO FAZ MUITOS VEREM POR TRÁS ‘MOTIVO ESCONDIDO’

E que tipo de mudança aconteceu na sua vida?

Passei a adotar uma racionalid­ade sistemátic­a sobre para onde mando meu dinheiro ao fazer doações a organizaçõ­es. Isso aprendi com meu livro: caridade não combina com racionalid­ade, mas com emoção. As pessoas gostam de doar e ajudar de forma espontânea. Mas entendi que é importante verificar a eficácia de cada instituiçã­o.

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BRYAN BEDDER/GETTY IMAGES

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