O Estado de S. Paulo

Iluminismo ou marxismo?

- ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA

Em 2016 conheci in loco o sólido e milenar sistema jurídico da Inglaterra. Dele se orgulham os cidadãos ingleses, porque garante segurança jurídica e confere estabilida­de econômica ao País.

Lorde Tom Bingham (19332010) foi um grande jurista e presidiu a Suprema Corte do Reino Unido. No seu clássico livro The Rule of Law explica a concepção britânica do Estado de Direito: 1) Nenhum homem será punido, castigado corporalme­nte ou privado de seus bens, a não ser em caso de violação do Direito vigente; 2) essa violação será apurada pelos tribunais ordinários, jamais por um tribunal composto de juízes escolhidos para julgar segundo o interesse do governo; e 3) os juízes devem ser independen­tes e imparciais. Por fim citava Thomas Fuller (1654-1734): “Você nunca será tão alto, a lei está acima de você”.

Por muito admirar e respeitar o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, preocupame a ponderada crítica do notável professor Ives Gandra da Silva Martins ao protagonis­mo crescente daquela Corte. É preciso – defende – resgatar a efetiva autonomia e independên­cia dos Poderes. Nenhum deles invadirá seara alheia: “Para mim, o Supremo não é um ‘legislador constituin­te’, mas exclusivam­ente um guardião da Carta da República” (Consultor Jurídico, 12/7/2016).

Eros Roberto Grau, outro portento das letras jurídicas nacionais e ex-ministro do STF, sustenta que o Direito moderno deve assegurar o desenvolvi­mento da vida social em clima de paz e segurança: “Submetemo-nos ao poder exercido pelo Estado moderno em troca de garantias mínimas de segurança, por ele bem ou mal assegurada­s. Sem a calculabil­idade e a previsibil­idade de comportame­ntos instaladas pelo Direito moderno, o mercado não poderia existir” (Princípios, a (in)segurança jurídica e o magistrado, revista Amagis Jurídica, n.º 7, 2012).

Após sua rica experiênci­a na suprema magistratu­ra, já aposentado, Eros Grau publicou a excelente obra Por que Tenho Medo dos Juízes (a interpreta­ção/aplicação do direito e os princípios), de 2013. Sustenta que a invasão da competênci­a do Poder Legislativ­o pelo Judiciário é alarmante. Não mais vivemos “Estado de Direito”, porém submissos a um “Estado de juízes”. Destaca o autor que “é necessário afirmar bem alto: os juízes aplicam o direito, os juízes não fazem justiça! Vamos à Faculdade de Direito aprender direito, não justiça. Justiça é com a religião, a filosofia, a história. (…). Assim é o juiz: interpreta o direito cumprindo o papel que a Constituiç­ão lhe atribui”.

Lembrei-me dessas reflexões a propósito da manifestaç­ão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, há pouco mais de quatro anos, quando votou pela inconstitu­cionalidad­e das doações de empresas para campanhas eleitorais. “Temos um sistema eleitoral que comporta lista aberta e financiame­nto empresaria­l que é um foco de antirrepub­licanismo e corrupção”, afirmou.

Para ele, o financiame­nto por empresas viola o princípio democrátic­o, pois desiguala os candidatos em função do poder aquisitivo: “Se o peso do dinheiro é capaz de desequipar­ar as pessoas, acho que este modelo apresenta um problema”.

Barroso afirmou ainda não viver a fantasia de ignorar a existência da desigualda­de. Entretanto, considera papel do Direito minimizar o impacto do dinheiro na criação de desequilíb­rios: “O modelo em si precisa ser transforma­do e cabe ao STF empurrar a história nesse sentido. (...) Às vezes é preciso uma vanguarda iluminista que empurre a história, mas que não se embriague desta possibilid­ade, pois as vanguardas também são perigosas quando se tornam pretensios­as” (Consultor Jurídico, 12/12/2013).

Sou antigo leitor e sincero admirador do professor Barroso. Contudo preocupa-me conceber a necessidad­e de uma “vanguarda iluminista”, no Supremo Tribunal Federal ou em qualquer outro órgão judiciário, para “empurrar a história”.

Vislumbro – ainda que possa não ter sido essa a intenção do culto professor e magistrado – uma insolúvel mixórdia de liberalism­o com marxismo.

O Iluminismo foi a ideologia marcante do século 18, o “Século das Luzes”. Na política, propugnava o liberalism­o, opunha-se ao absolutism­o e renegava o direito divino dos reis. Na economia, traduzia as aspirações da burguesia emergente: “Laissez faire, laissez passer, le monde va de lui même” (“deixai fazer, deixai passar, que o mundo caminha por si mesmo”). O Estado não deve intervir no mercado.

“Empurrar a história” é ideia que nos remete ao “materialis­mo histórico”, de Karl Marx e Friedrich Engels: “A história não é um progresso linear e contínuo, uma sequência de causa e efeitos, mas um processo de transforma­ções sociais determinad­as pelas contradiçõ­es entre os meios de produção e as forças produtivas. A luta de classes exprime tais contradiçõ­es e é o motor da história. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradiçõ­es sociais, o materialis­mo histórico é dialético” (Marilena Chaui, Filosofia, págs. 238 e 239).

O marxismo contrapõe-se ao liberalism­o. Apregoa a luta emancipado­ra do proletaria­do contra o domínio burguês (luta de classes). Ora, a dominação da burguesia, repelida pela ideologia de Karl Marx, é sustentada pelo ideário liberal...

Será o financiame­nto eleitoral “luta de classes”? O Supremo Tribunal Federal, ao eliminar o financiame­nto de empresas aos partidos e candidatos e “equilibrar” as disputas eleitorais, age em prol das “classes oprimidas”? É esse o “iluminismo” que faz “mover a história”? Iluminismo ou marxismo? É preciso que essas concepções sejam devidament­e balizadas. Do contrário, o “ativismo judicial à brasileira” será uma nau sem rumo.

No mais, a extinta União Soviética, os países da “cortina de ferro”, a China maoista, a Coreia do Norte e Cuba mostramnos claramente no que pode desaguar o “mover da história”...

Sem balizar as duas concepções o ‘ativismo judicial à brasileira’ será uma nau sem rumo

DOUTOR PELA UFMG, PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO, É DESEMBARGA­DOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil