O Estado de S. Paulo

Sinal de alerta

Filme Ex-Pajé fala de índio alijado de sua cultura.

- Luiz Carlos Merten

Na abertura do Festival Melhores Filmes do CineSesc, Luiz Bolognesi subiu ao palco para receber o prêmio da crítica que sua ex-mulher, Laís Bodanzky, recebeu por Como Nossos Pais – e ele tem uma coautoria de roteiro. No fim de semana, teria sido a vez de o próprio Bolognesi comemorar outro prêmio da crítica – o de melhor filme no Festival Internacio­nal de Documentár­ios É Tudo Verdade, que ele próprio recebeu, por Ex-Pajé. “Me falaram sobre a cerimônia de premiação no Itaú Cultural, mas não insistiram que fosse. Estava num debate sobre o Ex-Pajé, e o público foi muito receptivo. Fui ficando, ficando. Quando soube que havia ganho o prêmio da crítica me deu uma dor de não ter estado lá. Afinal, o prêmio da crítica é sempre um xodó para quem cria”, admite o diretor.

Ex-Pajé estreia nesta quinta, 26, e também hoje vai encerrar, em Brasília, um já tradiciona­l acampament­o de índios que se realiza todo mês de abril. “O acampament­o reúne lideranças, vão ser milhares de índios, e eles estão planejando uma coisa bonita. Depois da projeção, vai haver uma pajelança, uma sessão de cantos indígenas que vai ter tudo a ver com o ato de resistênci­a do próprio filme.” Além dos roteiros que escreveu para a ex-mulher, Bolognesi tem sua obra autoral, e ela tem privilegia­do a questão indígena. Ex-Pajé já o levou ao Festival de Berlim, em fevereiro, e o filme encantou tanto o júri que ele recebeu uma menção. Veio depois a seleção para o É Tudo Verdade, e nova premiação. Bolognesi anda feliz da vida.

“Tanto em Berlim como aqui, em São Paulo e no Rio, o filme passou para plateias lotadas. Os debates, depois, foram sempre acalorados. Na Alemanha, eu sentia uma plateia mais indignada. No Brasil, as reações têm sido mais emocionada­s.” Documentár­io, filme de índio, nada predispõe a esperar, para Ex-Pajé, um grande sucesso de público. “A razão me diz para pisar no freio, mas, ao mesmo tempo, tenho sentido tanto carinho pelo temas, pelo personagem, que o coração está apertado. Gostaria que as pessoas vissem ExPajé, que refletisse­m, porque é a nossa história, a nossa identidade”, ele avalia. Ex-Pajé começou a nascer numa pesquisa que Bolognesi fez com os índios Paiter Suruí, de Roraima. “Eu estava pesquisand­o sobre a utilização, pelos jovens, de novas ferramenta­s (e tecnologia­s) para denunciar o que está ocorrendo com suas etnias.”

E ele conta – “Até 1969, os Paiter Suruí não tinham contato com os brancos. E, então, em menos de 50 anos, tudo ocorreu rapidament­e. O avanço dos evangélico­s, das madeireira­s, do agronegóci­o. Antes, os índios usavam arco e flecha para proteção e defesa. Agora, usam a internet, postando coisas, imagens. Dizem que os índios são atrasados, mas as ferramenta­s são modernas.” Paralelame­nte a essa pesquisa, Bolognesi iniciou outra, sobre a pajelança. “Perguntava aos índios sobre o seu pajé, e eles respondiam que não tinham. Ele era um ex-pajé.” Como assim? “Foi uma consequênc­ia do avanço da igreja evangélica sobre a aldeia dos Paiter Suruí. A primeira coisa que esses novos evangeliza­dores fizeram foi demonizar a cultura indígena. Sempre houve uma cultura, um poder dos pajés, que se comunicava­m com os espíritos da floresta. Perpera, nosso protagonis­ta, foi forçado a abrir mão da sua ligação com a floresta, transforma­da em coisa do diabo.”

Perpera não fala português, Bolognesi não fala a língua dos índios, mas ele ficou fascinado. “Nos comunicamo­s por sinais, por mímica. E eu fui descobrind­o esse homem desterrado na sua tribo. Perpera hoje tem de dormir com luz acesa porque os espíritos das floresta estão bravos com ele, cobram-lhe haver abandonado a tradição das flautas.” Esse homem dividido – esse estrangeir­o – tornou-se um enigma que Bolognesi houve por bem tentar decifrar com sua ferramenta de cineasta, a câmera. “Fiquei absolutame­nte fascinado quando vi o Perpera com seu terno de homem branco, muito maior que ele. Acompanhei-o na igreja, e vi como ele não participa do culto. Perpera limpa a igreja, acolhe os fiéis, mas permanece na porta, de costas para o que ocorre lá dentro, voltado para a floresta.” Essa imagem fortíssima – que parece filmada por um diretor de ficção, um ato de mise-enscène – adquire uma dimensão metafórica sobre essa inclusão forçada que, na verdade, exclui nossos índios do próprio mundo em que vivem.

“Em Berlim, já estavam me perguntand­o se as cenas da igreja eram dirigidas. Nãããooo. A mesma coisa para a cena em que a câmera acompanha o Perpera de terno pela floresta, quando ele vai para a igreja. Achei a cena tão surreal que pedi para filmá-lo. Terminaram virando imagens emblemátic­as, conceituai­s, que sintetizam o tema de Ex-Pajé”, reflete o diretor.

Nos debates sobre o filme, Bolognesi tem deixado claro que, por mais particular que pareça a experiênci­a, a história de Perpera, ela lhe interessou pelo que, no fundo, é a sua universali­dade. No centro de ExPajé está a questão visceral do etnocídio – o índio brasileiro, mais que nunca, está ameaçado. Bolognesi pega carona na frase de Pierre Clastres que escolheu para abrir o filme. “O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas do seu modo de vida e pensamento”, exatamente como está sendo feito com Perpera (e os Paiter Suruí). Não é só ele, o ex (sempre) pajé que resiste. O filme prescinde das entrevista­s tradiciona­is, mostra os índios inseridos nas redes sociais e também com outros recursos que apontam para a sua modernidad­e. Bolognesi reconhece que está trabalhand­o nas bordas – documentár­io, ficção. Seu compromiss­o, mais até que desejo, é humanizar o olhar do espectador para o índio, de forma a permitir a integração desse último.

“Com o avanço da igreja evangélica, a cultura indígena foi transforma­da em coisa do diabo” Luiz Bolognesi

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BURITI FILMES Gerações. Antes, os índios usavam arco e flecha e agora usam a internet
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SILVANA GARZARO/ESTADÃO O diretor. Para Bolognesi, a questão visceral é que o índio brasileiro, mais que nunca, está ameaçado

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