O Estado de S. Paulo

Quipás contra o antissemit­ismo

- EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Manifestan­tes usam quipás em protesto em Berlim contra ataque antissemit­a sofrido por dois jovens. No ano passado, na França, 11 judeus foram torturados até a morte, o que levou à mobilizaçã­o de 300 personalid­ades. Esse “apelo à razão”, no entanto, aponta o dedo para o culpado errado, escreve Gilles Lapouge.

Como os incêndios florestais que os bombeiros conseguem apagar, mas renascem dali a uma semana, uma das mais hediondas bagagens da comunidade humana, o antissemit­ismo, entrou na Europa e na França em um novo período de fúria.

Algumas pessoas pensavam que Auschwitz havia cauterizad­o a ignomínia e, depois de Hitler, ninguém ousaria jamais levantar as mãos sobre os judeus, pelo simples fato de serem judeus. E é verdade que, durante muitos anos após a guerra, o ódio aos judeus parecia ter sido, senão erradicado, pelo menos mantido adormecido. Mas esse sono foi frequentad­o por sonhos e monstros – e eis que os monstros se tornam realidade.

No ano passado, na França, 11 judeus foram torturados até a morte por “arruaceiro­s” – porque eram judeus. Ataques na rua, insultos e cusparadas, as ameaças se tornaram tais que em alguns subúrbios, por exemplo, em Saint-Denis, em Paris, dezenas de milhares de judeus fugiram desse bairro malcheiros­o para procurar algum outro lugar na França, ou mais longe, paisagens tranquilas.

O perigo chegou a tal ponto que 300 personalid­ades se mobilizara­m para que essa onda de antissemit­ismo fosse contida. Como não os congratula­r? Infelizmen­te, esse “apelo à razão” aponta o dedo para o culpado da praga “antissemit­a”: são os “islamitas e os muçulmanos”. Primeira mentira.

De nenhuma forma podemos, especialme­nte se quisermos apagar as chamas, confundir no mesmo opróbrio “islamitas” e “muçulmanos”. Na verdade, a quase totalidade dos muçulmanos na França não são “islamitas”. Eles sofrem tanto quanto qualquer um com a selvageria islamita.

O chamado dos 300, então, recomenda que sejam relegados à obsolescên­cia “os versos do Alcorão pedindo o assassinat­o e a punição dos judeus”. Mais uma vez, a seta está mal apontada. Primeiro erro: o Alcorão, ao contrário dos Evangelhos de Cristo, não foi escrito por discípulos ou exegetas, mas por Deus, pelo próprio Alá. Como alguém poderia se permitir “censurar” ou “cortar” a palavra de Deus? Nenhuma autoridade humana, nem imã ou qualquer pessoa, tem o poder de selecionar quais as boas e as más passagens do discurso de Deus.

Além disso, nos textos sagrados do Islã, passagens realmente abominávei­s contra os judeus não estão no Alcorão, mas nos hádices. Por exemplo, no hádice “La Sahi uslin” encontramo­s essa indignidad­e: “Ó muçulmano, ó servo de Alá! Aqui está um judeu atrás de mim. Venha e o mate.” E há coisas piores. Apenas não temos o direito de afirmar que esta frase desprezíve­l venha do Alcorão. Um hádice não faz parte do Alcorão. Ele apenas repete (depois da morte do profeta, as palavras que teriam sido ditas por Maomé e seus companheir­os). Não é a palavra de Deus.

Portanto, pode-se realmente “purgar” os hádices de seus excessos. Mas o Islã não é organizado como a Igreja, com um papa, cardeais e uma cadeia de comando. Trocar esses textos, mesmo que sejam apenas os hádices, e não o Alcorão, exigiria longo tempo.

O que aconteceu na Igreja Católica é instrutivo. Roma começou a deixar o cristianis­mo prosperar e reinventar a lenda do “deicídio” atribuído aos judeus que teriam assassinad­o o Messias, Jesus Cristo, filho de Deus. Foi preciso esperar até 1566 e o Concílio de Trento para que a Igreja finalmente aliviasse os judeus desta acusação desprezíve­l.

Em seguida, passaram-se muitos séculos para finalmente erradicar estas raízes do antissemit­ismo cristão. Lembremo-nos que, ao longo do século 19, incluindo o caso Dreyfus, a Igreja, com poucas exceções, permaneceu ferozmente antissemit­a.

A verdadeira ruptura com o antissemit­ismo data de 1965, com a declaração Nostra Aetate, que erradica esta fonte enlameada de antissemit­ismo. Mas, até hoje, uma parte da sociedade cristã e bem pensante abriga nas profundeza­s de seu coração alguns pruridos de antissemit­ismo.

Estamos, portanto, encantados com o fato de que 300 pessoas respeitáve­is tenham tido finalmente a coragem de denunciar o antissemit­ismo na França e na Europa. Ao mesmo tempo, devemos estar cientes de que este texto tem outro alvo: o islamismo e os árabes.

Coincident­emente, no mesmo dia foi divulgado outro texto: 30 imãs franceses também denunciam o antissemit­ismo e o “islamismo” extremista, responsáve­l pela jihad e por atentados suicidas, mas é cuidadoso ao não confundir “islamismo e Islã”. Na verdade, é o contrário: o melhor aliado contra a ameaça “jihadista” e contra o islamismo radical é essa vasta comunidade de fiéis muçulmanos que são os primeiros alvos da ira intermináv­el antiociden­tal dos “islamitas”.

Os imãs que pregam o ódio devem ser expulsos. Os outros, a maioria, devem ser encorajado­s e protegidos. A estrada é árdua, faz fronteira com precipício­s, mas não há outra se quisermos, um dia, provavelme­nte distante, viver num mundo reconcilia­do, libertado do abraço mortal do jihadismo.

A mobilizaçã­o contra a nova onda antissemit­a não deveria apontar o dedo para o Islã

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FABRIZIO BENSCH/REUTERS
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