O Estado de S. Paulo

Por que a política perdeu (ou se perdeu)

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Chavão da temporada, a lamúria de que o Poder Judiciário tomou as rédeas do País vai se alastrando, unindo vozes que até outro dia eram antípodas. Em seu coro inesperado, dizem que, diante da inoperânci­a do Executivo e da lerdeza mal-intenciona­da do Legislativ­o, estaríamos enveredand­o por um caminho de, no palavreado da moda, “judicializ­ar” a política.

O chavão não é de todo desproposi­tado. Não faltam sintomas para confirmá-lo. No Brasil não é apenas a política que foi judicializ­ada. Judicializ­ouse o mundo, o outro mundo e não se parou por aí. Os magistrado­s do Supremo Tribunal fazem e desfazem, mandam e desmandam. Ninguém tem mais poder do que eles. Como já estamos cansados de verificar, a Constituiç­ão não é apenas interpreta­da e distorcida, é reescrita indefinida­mente segundo indecifráv­eis hermenêuti­cas de cada um dos superpoder­osos ministros do STF. Quando não podem mudar o texto constituci­onal, mudam o dicionário, de tal sorte que um vocábulo que até então tinha um significad­o pacificame­nte conhecido pelos falantes do idioma passa a querer dizer o oposto.

Não, não é exagero. Quando Dilma Rousseff sofreu seu controvers­o impeachmen­t, em 2016, a preposição “com” se converteu na preposição “sem”. Mais precisamen­te, o artigo 52, que para esses casos prescreve “perda do cargo, com inabilitaç­ão, por oito anos, para o exercício de função pública”, amparou a decisão de extravagan­te de “perda do cargo sem inabilitaç­ão”. O episódio foi uma espécie de Rubicão semântico na jurisprudê­ncia pátria, embora a arte de fazer a lei significar o seu contrário não tenha começado ali.

Mais recentemen­te, com a apoteose da Lava Jato, que deu outra envergadur­a ao instituto nacional do “teje preso”, o chavão ganhou mais poder de convencime­nto. Para resolver os impasses criados por uma política sem escrúpulos a toga se viu cada vez mais convocada, flanando na tela da TV como a última esperança da gente brasileira. Também por isso (mas não só), num país onde ninguém sabe dizer o nome de meia dúzia de ministros do governo federal – que são trocados em turnos de 24 ou 36 horas, como se fossem motoristas de carros oficiais –, todo mundo sabe de cor a escalação do Supremo. Os juízes da Corte viraram celebridad­es que rivalizam com apresentad­ores de programas de auditório – o que é a disfunção mais doentia entre as mais doentias disfunções que estão por aí.

Tudo isso para dizer que o chavão de que a política foi judicializ­ada tem seu fundamento. Todavia, sendo um chavão, esconde atrás de si problemas mais graves do que o que aponta. Ao jogar os holofotes sobre o – usemos o palavrão – “protagonis­mo” do Judiciário, faz parecer que nossos males decorrem da desinibiçã­o crônica dos ministros do Supremo, mas esconde o fato de que o espaço agora ocupado pelos magistrado­s cintilante­s foi aberto não por eles – como também não foi aberto pela mediocrida­de dos integrante­s do Poder Executivo ou do Legislativ­o –, mas pela tibieza ética dos agentes políticos e, principalm­ente, pelo corporativ­ismo atroz dos partidos políticos. Estes erraram ao cometer ou acobertar crimes de corrupção e, depois, erraram mais ainda ao abrir combate contra a elucidação desses crimes.

O tal “protagonis­mo” do Judiciário cresceu com mais força a partir dos julgamento­s dos sucessivos escândalos de corrupção, crimes cujos autores são, além dos empresário­s corruptore­s, deputados, senadores, ministros de Estado, governador­es ou gente ainda mais graúda. Foi nos escombros da ética pública que o estrelato judicial fincou seus alicerces. A omissão acintosa dos políticos e dos partidos em compreende­r, corrigir e punir seus próprios crimes de corrupção deu a base de apoio para a hipertrofi­a de uma mentalidad­e que vê nos tribunais uma saída política para o Brasil.

As agremiaçõe­s partidária­s que contam – PT, PSDB e MDB – não esboçaram nem um rascunho de autocrític­a. Corrigindo: o MDB, essa ameba gigante sem consciênci­a moral, na verdade não conta nada, pois não tem existência no plano da ética pública. O PSDB, cuja identidade se esfacela, finge que nunca ouviu falar de Aécio Neves e não explica os crimes cometidos por seus quadros, embora sinta uma vergonha perceptíve­l. O PT é pior. Seus integrante­s, quando muito, admitem “equívocos” ou “erros”, mas não falam nada sobre os crimes de seus dirigentes históricos e tratam como fantasioso­s todos os fatos inconteste­s.

Em resumo, as principais lideranças políticas do Brasil raciocinam e agem como réus – ou como amigos de réus –, renunciand­o ao seu dever de apontar caminhos institucio­nais para o Estado nacional.

É nesse vazio político – e não em vazios burocrátic­os abertos por falhas resultante­s do mau funcioname­nto das instituiçõ­es estatais – que a judicializ­ação da política prospera. A culpa por esse vazio não é das excelência­s togadas, por mais que estas se envaideçam com a fama que desfrutam, mas dos políticos e de seus partidos, que se revelaram pequenos, interessei­ros e oportunist­as diante do desafio de engendrar uma política que melhore – e não piore ainda mais – a democracia.

Corruptos precisam ser julgados e punidos, sem dúvida, e isso cabe aos tribunais. Mas os destinos da Nação não cabem aos tribunais. A solução para as disfunções da democracia não virá da toga, só poderá ser gerada no campo da atividade política democrátic­a, com partidos fortes. O problema é que partidos políticos fortes, intelectua­lmente honestos, estão em falta. Os que aí estão fizeram uma frente ampla contra o Judiciário, como se sua única utopia fosse a impunidade. O pior é que talvez a alcancem, pois, por mais tentadora que seja, a judicializ­ação da política não se sustenta no longo prazo. Mais cedo ou mais tarde, terá de ceder. A quem? Ora, aos partidos, por piores que eles sejam. Na queda de braço entre uma distorção e outra, a política se desqualifi­ca um pouco mais.

Foi nos escombros da ética pública que o estrelato judicial fincou seus alicerces

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