O Estado de S. Paulo

Um ato de resistênci­a simbólica ao etnocídio cultural

- Luiz Zanin Oricchio

Oprimeiro sentimento diante de Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, é de perplexida­de. De fato, como sentir-se indiferent­e diante do que é mostrado, o antigo pajé Perpera, dos Paiter Suruí, na Amazônia, “destituído” de suas funções com a chegada à região de uma igreja evangélica?

O espanto prossegue quando se sabe que Perpera passou a ser discrimina­do por sua própria

comunidade, uma vez que o pastor rotulou suas atividades de “coisa do diabo”. Ele só volta a ser tolerado depois que o religioso, num gesto de benevolênc­ia, permitiu que trabalhass­e como vigia da igreja. Há um sentimento de mal-estar, também, ao ver aquele indígena vestido de camisa social e gravata para prestar seus serviços ao culto que o alijou de suas funções sociais.

No início do filme, leem-se palavras do etnólogo francês Pierre Clastres, que distinguem o genocídio do etnocídio. O primeiro se refere ao assassinat­o das pessoas físicas. O segundo, destrói culturas, quadros de referência nos quais as comunidade­s se reconhecem como tais. O que vemos em Ex-Pajé é um estudo, ao vivo, de um quadro de etnocídio.

Outra cena impression­a. É quando duas pessoas vão consertar a iluminação elétrica da casa do ex-pajé e dizem que voltariam no dia seguinte. Ele pede que façam o serviço imediatame­nte. Não pode dormir no escuro porque os espíritos estão bravos com ele desde a chegada da igreja e poderão atormentá-lo durante a noite. Para combater a vingança dos espíritos, ele precisa de lâmpadas, de energia elétrica. Vamos vê-lo também instalar um grande máquina de lavar roupa, que serve à igreja provavelme­nte. E também quando pede ajuda para buscar gás, pois não tem força para levantar o botijão cheio.

Os signos e utensílios da assim chamada “civilizaçã­o” estão por toda parte – o gás, as armas, a eletricida­de, os computador­es, celulares, as roupas. Os nativos desistiram de andar pelados, porque, de acordo com o pastor, a nudez ofende Nosso Senhor Jesus Cristo.

Há um dado aí. A presença da tecnologia não compromete a identidade indígena, ou, pelo menos, a sua cultura consegue conviver com objetos que facilitam a vida das pessoas, mas as fazem abandonar práticas ancestrais. Comunidade­s indígenas não são museus a céu aberto nem precisam ficar paradas no tempo. Apenas uma visão

purista os imaginaria isolados, como se um curumim não fosse tentado pelos joguinhos eletrônico­s que fascinam crianças de sua idade.

Outra coisa é uma evangeliza­ção agressiva, que atinge a identidade cultural em seu cerne e a descaracte­riza. Quando aquilo que representa a consistênc­ia social é demonizado, algo de muito grave está se passando. Por sorte, o filme indica que as práticas proscritas pela igreja evangélica continuam vivas no inconscien­te indígena e voltam à tona em situações graves. É o que acontece quando uma das mulheres da tribo é picada por uma jararaca e fica entre a vida e a morte num hospital montado pelos brancos.

Nesse momento, o “ex-pajé” volta à ativa, embora de maneira discreta. Pois é ele quem dispõe da “eficácia simbólica” de que falava o etnólogo Claude Lévi-Strauss num escrito clássico sobre o xamanismo. Ex-Pajé é um filme sobre a resistênci­a ao etnocídio.

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