O Estado de S. Paulo

Posteridad­es

- LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Otúmulo do Herbert Spencer fica em frente ao do Karl Marx no cemitério Highgate, em Londres. Spencer morreu em 1903, o que significa que os dois são vizinhos há 115 anos.

Pode-se especular que, vez por outra, cheguem na sacada dos seus respectivo­s monumentos para uma conversa de fim de tarde.

– Que tempo, hein Herbert? – Horrível, Karl. Eu sempre digo que a única vantagem de estar morto na Inglaterra é que nos livramos do clima.

– Não me refiro ao clima, Herbert. Me refiro a esse tempo que estamos vivendo. Ou que os vivos estão vivendo. Essa crise...

– Imaginei que você estaria contente com ela, Karl. Você sempre disse que o capitalism­o ia acabar...

– Mas não assim, não num desastre sem qualquer significad­o histórico. Causado pela pura ganância, pela intolerânc­ia, pelo fascismo redivivo, pela simples cupidez humana. Há algo menos científico do que a cupidez humana, Herbert?

– Bem...

– O que eu tinha previsto era o fim de um processo, a síntese final de uma inevitável progressão dialética que terminaria com o proletaria­do livre para sempre dos seus grilhões numa sociedade sem classes. Não com a classe média fazendo as contas para comprar um novo micro-ondas. Que consciênci­a revolucion­ária pode nascer de uma insatisfaç­ão com a falta de crédito?

– Pois eu baseei toda uma filosofia na defesa da cupidez humana, como você deve se lembrar, Karl. Nada é mais natural do que a cupidez humana, e a ciência deve reconhecer que as leis da Natureza também regem o comportame­nto humano. E a primeira lei da Natureza é cada um por si e por suas ambições. É o desejo do micro-ondas que move, metaforica­mente, a humanidade.

– Você e o seu darwinismo social. Como é mesmo a sua frase famosa? A sobrevivên­cia dos mais capazes...

– Que hoje todo mundo pensa que é do Darwin, e é minha. Infelizmen­te, não podemos controlar nossa posteridad­e do túmulo.

– Mas a sua posteridad­e está ganhando da minha, Herbert. O capitalism­o em crise não comprova a minha teoria, comprova a sua. A fome do mundo não é de igualdade e justiça, é de eletrodomé­sticos e férias no verão. Quem manda no dinheiro e, portanto, no mundo são três ou quatro gerentes financeiro­s que sonham com um novo Porsche. Não foi a reação que derrotou o comunismo, foi o consumismo. Nunca uma troca tão pequena de letras significou tanto.

– Não se deprecie, homem. Que importa se o capitalism­o acabará com uma revolução ou um gemido, se se autodestru­irá ou se regenerará? Aconteça o que acontecer, ainda virá mais gente visitar o seu túmulo do que o meu. Aliás, nenhum dos neoliberai­s que vinham prestar suas homenagens ao seu filósofo favorito tem aparecido, ultimament­e. Como você vê, as flores que deixaram da última vez no meu túmulo estão mais murchas do que os prognóstic­os econômicos para 2018. Você ainda é o cara.

– Obrigado, Herbert. Mas você não está querendo ver o paradoxo. Se o capitalism­o cair por acaso, por nenhum determinis­mo científico, eu caio junto com ele. Terei sido o pior tipo de profeta, o que acerta por engano.

– O acaso, o acaso... Neste ponto nós sempre concordamo­s, discordand­o do Darwin. Ele atribuía a evolução ao acaso. Nós sempre achamos que havia um fim previsível para as nossas respectiva­s explicaçõe­s do mundo, que nossas evoluções tinham um objetivo que as redimiria.

– Mas num ponto Darwin teria razão em defender o acaso, Herbert. – Qual?

– Foi por puro acaso que enterraram você aí, na minha frente, e podemos ter essas nossas conversas de fim de tarde.

– É verdade, Karl.

A única vantagem de estar morto na Inglaterra é que nos livramos do clima

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