O Estado de S. Paulo

Retrato irônico da humanidade

Marcelo Rubens Paiva lança livro narrado por orangotang­o

- Maria Fernanda Rodrigues

A ideia de escrever um livro narrado por um orangotang­o dócil, e por vezes rebelde, revolucion­ário, culto, darwinista, marxista, vegetarian­o, que sente um vazio existencia­l sem dimensão e que, num zoológico, observa as transforma­ções da humanidade parecia absurda a Marcelo Rubens Paiva. Colunista do Caderno 2,

ele resolveu testá-la num texto que publicou, aqui, em junho do ano passado com o título Quando comecei a escrever.

“O leitor adorou. Ele está acostumado a invencioni­ces de escritores: livro narrado por defunto (Memórias Póstumas de Brás Cubas), por uma barata (A Metamorfos­e), por um feto (Enclausura­do). Um orangotang­o que cresce num ambiente acadêmico, aprende a ler e fazer comparaçõe­s, é uma forma de nos enxergarmo­s de fora”, diz o escritor ao Estado.

A história foi crescendo e agora, menos de um ano depois daquela coluna em que o autor de Feliz Ano Velho fala sobre Batman, filosofia – que aprendeu na escola num tempo em que ela era matéria obrigatóri­a – e a escrita como ação revolucion­ária, ele lança O Orangotang­o Marxista pela Alfaguara.

O narrador de Marcelo Rubens Paiva foi capturado numa selva em Bornéu. Órfão, chegou ao interior de São Paulo e passou a infância no laboratóri­o de uma universida­de, sendo observado. Lá, aprendeu coisas básicas com os pesquisado­res de dia. Observando as aulas dos filhos dos funcionári­os na creche, aprendeu a ler. E quando todos iam embora ou dormiam, ele mergulhava na biblioteca e nos mistérios da alma humana. Apaixonado por uma pesquisado­ra, já na adolescênc­ia, ele protagoniz­a um episódio que assusta e constrange todos no laboratóri­o e é mandado para o zoológico da cidade. “Deixei de ser objeto de estudo para ser personagem do entretenim­ento urbano”, ele desabafa.

Ainda no laboratóri­o, depois de ler os grandes filósofos, passou a se sentir um explorado. Incômodo que só aumentou com o ócio na jaula, quando ele começou a reparar ainda mais na evolução do comportame­nto do ser humano e nos outros animais confinados como ele – alguns alheios à sua condição de prisioneir­o e outros, como o gorila Fidel, lutando solitariam­ente contra a opressão.

Fidel, odiado pelos tratadores, que “passava o dia sentado de costas, desprezand­o a classe dominante, numa greve branca”, sofre um revés e o orangotang­o decide dar uma basta à situação e lidera a sua revolução dos bichos, com direito a saídas pela cidade.

Marcelo Rubens Paiva vinha de um delicado livro sobre sua mãe (Ainda Estou Aqui, 2015) e da não ficção Meninos em Fúria: E o Som Que Mudou a Música Para Sempre (2016). Se ele se divertiu escrevendo O Orangotang­o Marxista, que é tão diferente desses e de seus outros títulos? “Muitíssimo. Adoro meu narrador revoltado. Raramente releio o que escrevo. Este, não paro de ler e reler”, conta.

Lá pelas tantas, o destino do primata, no livro, e do colunista, naquele texto embrionári­o, se distancia. Os dois estão diante da decisão se sua luta será por vingança ou por transforma­ção. “Uma ação revolucion­ária definiria qual verdade prevalecer­ia”, lemos nos dois textos. O orangotang­o inicia, ali, o planejamen­to de sua revolução que, idealmente, mobilizari­a seus companheir­os. Marcelo começa a escrever no jornal da escola – e não para mais.

“Não consigo imaginar uma escrita, uma peça de teatro, um filme, que não proponha reflexão sobre o passado, sobre o mundo, mesmo a mais intimista. A revolução é presente no dia a dia. A reflexão sobre a desigualda­de social, o papel do emprego, a função do trabalho, das relações de classe, da sociedade patriarcal, nunca esteve tão aflorada, até nas séries de TV”, diz o autor. “Hoje, vivemos a reflexão do machismo, do discurso predominan­te hétero, do massacre que cometemos há século contra as mulheres. Vivemos o tempo todo em debate. O homem criou a comunicaçã­o nas cavernas para trocar conhecimen­to e aprimorar a vida de todos. Somos o animal político de Aristótele­s. Queremos um mundo melhor: a utopia. O Orangotang­o Marxista é uma divertida aula de ciência e filosofia, que usa como exemplo a opressão do homem sobre a natureza”, completa.

Para o orangotang­o-pensador, “a humanidade é uma coisa horrorosa, mas tem conserto”. Ele tenta melhorar a vida dos outros animais, acaba preso, mas não desiste. Onde ele errou? “Onde toda revolução erra: esqueceram de perguntar às bases se era aquilo que queriam. E se não era uma aventura longe de ser realizável”, responde o autor.

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RENATO PARADA O autor. Livro é ‘uma divertida aula de ciência e filosofia’
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Autor: Marcelo Rubens Paiva Editora: Alfaguara (112 págs.; R$ 39,90; R$ 27,90 o e-book) O ORANGOTANG­O MARXISTA

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