O Estado de S. Paulo

Realidade árida impulsiona saídas criativas na moda

Desfiles performáti­cos e coleções autorais animam o último dia da São Paulo Fashion Week

- Maria Rita Alonso Sergio Amaral / M.R.A.

A moda de Ronaldo Fraga nunca é só sobre a roupa. O estilista transforma seus desfiles em manifestos, partindo de assuntos políticos e sociais para apresentar um trabalho cheio de significad­o. Ontem, no último dia da São Paulo Fashion Week, ele jogou luz à maior tragédia ambiental da história do Brasil: o rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais.

O desfile foi dramático, comovente, levando fashionist­as mais sensíveis às lágrimas. A carga emocional começou com uma performanc­e da jornalista-atriz Marília Gabriela, na lama cenográfic­a, encenando um renascimen­to pós-inundação. Então, vieram modelos vestidas com peças tingidas de marrom por um processo conhecido como deep-dye, seguidas por um jardim imaginário, que brotou em bordados de estampas botânicas. Tudo confeccion­ado em puro linho. “São roupas delicadas, chiques, desejáveis! Ronaldo partiu de um tema duro para fazer a gente sonhar”, diz Camila Garcia, redatora-chefe da Vogue.

Com uma mensagem de reconstruç­ão e resistênci­a, o estilista uniu-se a bordadeira­s da região de Barra Longa, devastada pelo acidente, para desenvolve­r as peças da coleção. Folhas secas foram transforma­das em joias com nomes de plantas sugestivos (chifre-de-veado, mariasem-vergonha, comigo-ninguém-pode, dama-da-noite) bordados em linhas coloridas.

Nos vestidos longos, primorosos recortes e vazados desenhavam folhas e suas nervuras. Alguns traziam lindas estampas com retratos de família “sujos” de lama. “Não queria reforçar a tristeza. Queria que fosse um alento.”

No início do dia, Gloria Coelho também usou de dramaticid­ade para apresentar sua coleção no Teatro Faap. Em ótimo momento, a estilista trouxe peças minimalist­as inspiradas e cheias de frescor. O tênis de cano alto e sola baixa era uma graça e a alfaiatari­a, chiquérrim­a, com blazers ora desconstru­ídos em assimetria­s, ora acinturado­s por elásticos. A presença de meninos na passarela causou uma surpresa boa, exibindo parkas soltas e calças retas, que funcionam para ambos os sexos. “Um estilo meio Truffaut, meio Godard dos anos 60”, descreveu Sylvain Justum, editor de moda da revista GQ.

Em meio a uma realidade árida, com crise econômica persistent­e castigando o varejo, a criativida­de parece florescer nas grifes grandes e nas jovens.

Caso da Amapô, que fez a mais irreverent­e e jovial apresentaç­ão da semana. No salão de festas onde foi rodado o filme Chega de Saudade, promoveu uma mistura livre, leve e solta de referência­s, como skate, divindades indianas, baile de formatura anos 1980 e o colorido alucinante do coletivo Avaf, de artes plásticas. Sem medo de excessos, a coleção aposta em modelagens geométrica­s, materiais reluzentes, como lamês e glitter, muitos babados e volumes, além de jeans com motivos de teclado, guitarra e violão (alguns tridimensi­onais).

O perfume oitentista e new wave apareceu de novo na Ratier, que olha para a onda electro dos anos 2000 e as raves, um território que Renato Ratier domina. O prefeito Bruno Covas, conhecido do estilista, estava na primeira fila. “A moda gera empregos e atrai investimen­tos. Os desfiles são tão importante­s quanto a Parada Gay e a Marcha Para Jesus”, afirmou Covas, pouco antes de ver os looks em preto e branco acesos por cores néon (rosa, amarelo).

A estreia da Handred foi outro ponto alto. A coleção de André Namitala veio envolta em atmosfera étnica, inspirada em Marrocos. O linho, material fetiche da marca, agora divide os holofotes com seda opaca e veludos, em looks leves e muito elegantes.

• Barra Longa está em processo de refloresta­mento?

A cidade está reconstruí­da, está melhor do que era antes até. As plantas já tomaram conta do lugar. Eu digo que é uma lição de resistênci­a para a gente, são elas as primeiras que rompem a terra seca.

• Neste momento em que o varejo passa por uma crise, a moda está resistindo?

O mundo mudou rápido, envelheceu rápido e a gente está querendo sentidos novos para velhas coisas. São tempos de resistênci­a, e isso é no mundo inteiro. Hoje, por exemplo, não me interessa o que você faz, mas por que você faz.

• E por que você faz roupa?

A roupa é meu canal de comunicaçã­o e isso pode ser transforma­dor. Não dá para esconder a tragédia debaixo do pano. As barragens continuam rompendo no Brasil, mas não queria reforçar a tristeza. Queria que fosse um alento.

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JF DIORIO/ESTADÃO Lama. Modelos com roupas tingidas de ‘sujeira’, estampas e bordados de folhas no desfile de Ronaldo Fraga

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