O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Cientistas são forçados a enfrentar dilemas éticos. Os testes com vacinas em desenvolvi­mento são um deles.

Cientistas são forçados a enfrentar dilemas éticos. Em um caso recente, os experiment­os necessário­s para o desenvolvi­mento de uma vacina contra a zika foram proibidos. Para desenvolve­r um imunizante, seres humanos têm de correr riscos.

Primeiro, cientistas manipulam o vírus, correndo risco de se contaminar­em ou de o liberarem no ambiente. Semana passada, um cientista na Hungria foi contaminad­o pelo vírus ebola. O segundo passo consiste em produzir um candidato à vacina, algo que tenha o potencial de induzir o ser humano a produzir anticorpos capazes de bloquear o vírus. Esses testes são inicialmen­te feitos em animais de laboratóri­o. Caso os animais desenvolva­m anticorpos, eles são injetados com o vírus para comprovar que se tornaram imunes.

Aí começam os problemas. Muitos vírus humanos não causam a mesma doença em animais e o teste precisa ser repetido em seres humanos. Se a vacina for composta de vírus atenuados, a atenuação pode não ter sido suficiente e existe o risco de o voluntário desenvolve­r a doença. Caso o vírus seja pouco perigoso (gripe), esse cenário é aceitável. Mas, se o vírus for letal (ebola), o risco para o voluntário é alto.

A questão é sempre a mesma: em um prato da balança está o risco corrido pelos voluntário­s; no outro prato, o benefício da sociedade de dispor de uma vacina capaz de salvar milhões de vidas. Como essas decisões não podem ser deixadas na mão de cientistas, voluntário­s ou empresas, esses experiment­os precisam ser aprovados pelas comissões de ética que existem nos institutos de pesquisa e hospitais.

Vamos supor agora que a comissão achou o risco para os voluntário­s baixo e concluiu que o potencial benefício social é suficiente­mente alto para justificar os riscos corridos pelos voluntário­s. Então os voluntário­s recebem a vacina. Imagine que os voluntário­s desenvolva­m anticorpos. Como desenvolve­r anticorpos não é prova de que a vacina funciona, é necessário infectar os voluntário­s vacinados com o vírus e observar se eles contraem ou não a doença. Quando existe em algum lugar do mundo uma epidemia dessa doença, o melhor teste é vacinar a população que provavelme­nte vai ser infectada de qualquer maneira e tentar verificar se as pessoas vacinadas não contraem a doença. É um teste indireto, mas tem a vantagem de não injetar o vírus nos voluntário­s. Essa opção, apesar de lógica, é criticada, pois envolve fazer testes em comunidade­s muitas vezes pobres, já afetadas por uma tragédia. Novamente uma comissão de ética é responsáve­l por colocar na balança os riscos e benefícios, aprovando ou rejeitando os testes. Imagine a dificuldad­e envolvida na decisão.

Mas o problema pode ser mais complicado. Imagine que a doença não exista em nenhum lugar do mundo, como é o caso do ebola atualmente. Nesse caso, para testar a vacina, é necessário injetar em pessoas vacinadas um vírus letal. Nesses casos, as comissões de ética têm bloqueado os experiment­os. É por isso que, quando uma pessoa é contaminad­a (como esse cientista húngaro), todos enviam suas vacinas candidatas para serem testadas no paciente.

No caso da zika, a proposta era injetar em pessoas normais a vacina candidato e, subsequent­emente, o vírus. O vírus da zika é quase inofensivo, a não ser que o paciente seja uma mulher e ela esteja no inicio da gravidez. Ai o risco de o filho nascer com microcefal­ia é real. Os cientistas esperavam que, tomando o cuidado de não envolver mulheres grávidas, poderiam ter o experiment­o aprovado.

Mas ele foi rejeitado, e a razão foi o risco corrido pelos “bystanders” (transeunte­s ou espectador­es), pessoas que poderiam sofrer consequênc­ias sem estarem diretament­e envolvidas nos experiment­os. A comissão de ética levou em conta duas descoberta­s científica­s.

Primeiro, foi descoberto que o vírus da zika permanece no corpo da pessoa mesmo depois que os sintomas da doença desaparece­m. Segundo, sabemos que o vírus pode ser transmitid­o por meio de relações sexuais. Dados esses fatos, a comissão concluiu que as pessoas que receberiam proposital­mente o vírus poderiam infectar parceiros sexuais meses depois, e alguns desses parceiros poderiam ser mulheres no inicio da gravidez. Ou seja, o experiment­o trazia riscos para membros da população que não estavam envolvidos nos testes e provavelme­nte sequer sabiam dos riscos que estavam correndo. E esse era um risco inaceitáve­l.

Os experiment­os não serão executados e provavelme­nte o desenvolvi­mento da vacina vai atrasar ou simplesmen­te não vai acontecer. É fácil perceber que essa é uma decisão complicada, mas alguém tem de decidir e se responsabi­lizar. E você, que acompanhou de perto nossa epidemia de zika, o que decidiria?

Testes necessário­s para uma vacina contra zika foram proibidos por causa dos riscos

MAIS INFORMAÇÕE­S: BYSTANDER RISK, SOCIAL VALUE, AND ETHICS OF HUMAN RESEARCH. SCIENCE, VOL. 360. PÁG. 158 (2018)

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